“Como uma garota, espero um dia ter tantos direitos quanto uma arma”, diz manifestante
Anteontem aconteceu o que pareceu com um terremoto nos EUA. Vazou o rascunho de uma provável decisão da Suprema Corte dos EUA que reverteria o Roe vs Wade , uma jurisprudência que existe desde 1973 e que permite o aborto.
Se isso realmente acontecer, será um pesadelo para as mulheres americanas, que há quase 50 anos têm acesso ao aborto seguro na maior parte do país. Legisladores estaduais poderão até proibir a interrupção da gravidez em todos os casos (inclusive em gravidez que resulta de estupro e naquelas em que a gestante corre risco de morrer se prosseguir).
Ninguém imaginava que, nos EUA depois de Trump, as mulheres perderiam um direito conquistado a duras penas há quase meio século. Pensavam que o pior já havia passado. Mas o misógino conseguiu deixar raízes e formou um Supremo conservador, que nem Bolso tenta fazer aqui. Na contramão de países como Colômbia, Argentina, México e Chile, os EUA planejam um retrocesso gigantesco nos direitos reprodutivos.
É verdade que, nos últimos anos, os conservadores conseguiram restringir cada vez mais o direito ao aborto em vários estados, principalmente aqueles do Sul. Por enquanto o Texas é o pior deles, mas aguarda-se uma decisão do Oklahoma que pode banir o aborto em todos os casos (exceto em risco da gestante) naquele lugar. E por que as mulheres (e também homens trans) abortam?
No Texas, que tem aprovado os maiores retrocessos em relação ao aborto, uma pesquisa revelou que as texanas abortam por esses motivos: 40% porque não têm recursos financeiros, 31% porque têm um companheiro abusivo ou que não as apoia, 29% já têm filhos, 20% acham que ter um filho iria interferir com seus planos educacionais ou de trabalho, 19% citam motivos emocionais ou mentais, 12% citam motivos de saúde física, e 12% gostariam de oferecer uma vida melhor ao bebê do que elas podem providenciar.
Pesquisas mostram que a maior parte dos americanos é a favor da legislação como ela está agora. Apenas 10 a 15% creem que aborto deveria ser proibido em todos os casos. Numa pesquisa da rede CNN de janeiro, 69% dos entrevistados foram contra derrubar a jurisprudência do famoso caso Roe vs. Wade. 30% eram a favor. Não preciso nem dizer que Roe não marca quando as mulheres começaram a abortar. Roe marca quando as mulheres pararam de morrer ao abortar.
Legalizar o aborto é uma questão de saúde pública . A criminalização mata as pessoas mais vulneráveis, como mulheres pobres e negras. Todos os anos, o Brasil registra 20 mil nascidos vivos em crianças com menos de 14 anos, o que chamamos de estupro de vulnerável. Nesses casos, as meninas que engravidam poderiam abortar (o aborto ainda é legal em caso de estupro), mas a rede de assistência é tão minúscula que elas nem sabem onde procurar. E, quando encontram ajuda, têm que enfrentar turbas de religiosos que bloqueiam entradas de hospital e chamam uma garota de 10 anos que foi estuprada e engravidou de “assassina”. Tudo com o aval da ministra de Direitos Humanos, que divulga o endereço da garota e do hospital.
Se a jurisprudência for revogada pela Suprema Corte, cada Estado fica livre para proibir ou liberar o aborto (como era antes de 1973). Mais da metade dos estados são conservadores e estão loucos pra proibir o aborto completamente.
O FDA (Food and Drugs Administration, tipo a Anvisa de lá) permitia que quem quisesse abortar nos EUA recebesse em casa um bloqueador de hormônios chamado mifepristone (quase metade dos abortos não são mais cirúrgicos, e sim através de medicamentos, o que é mais barato e menos arriscado). Infelizmente, em 19 dos 50 estados americanos o aborto medicinal já está proibido. Mas as mulheres ainda podiam apelar a, por exemplo, ONGs sem fins lucrativos como a Women on Waves e Women on Web, que enviam comprimidos de mifepristone e misoprostol (o mais popular no Brasil). O problema é que tudo isso deixa rastros no seu celular , no seu computador. E óbvio que tem miliciano querendo perseguir mulheres que abortam. Imagina, pra quem passou os últimos 50 anos bombardeando clínicas de aborto e sequestrando e matando médicos, stalkear e atacar mulheres é um passeio no parque.
E já há jurisprudência pra condenar mulher que aborta nos EUA. Em 2017, Latice Fischer, uma mulher negra, foi a um hospital no Mississippi depois de sofrer um aborto em casa. Como antes disso ela tinha tido atendimento médico, que confirmou a gravidez, mas ela não voltou ao hospital para o ultrassom, os médicos entregaram a documentação (vai contra a ética, viola o sigilo entre paciente e médico!) à polícia, que iniciou uma investigação contra Latice. E eles encontraram buscas no celular dela para misoprostol. Isso foi usado como evidência de que ela “matou” seu feto, e ela foi acusada de homicídio em segundo grau. Pensou que essas barbaridades só acontecessem em El Salvador? Errou!
Pois isso está prestes a piorar muito nos EUA. E lógico que toda essa movimentação reacionária deixa ouriçados os fanáticos misóginos de todo o mundo. Como disse um pastor metodista dos EUA, “aqueles que não nasceram são um grupo conveniente de pessoas para se defender. Eles nunca exigem nada, não são moralmente complicados, ao contrário dos encarcerados, dos viciados, dos miseráveis; ao contrário das viúvas, eles não pedem que você combata o patriarcado; ao contrário dos órfãos, eles não precisam de dinheiro, educação ou creches; ao contrário dos imigrantes, eles não trazem toda aquela bagagem racial, cultural e religiosa que você não gosta; os não nascidos permitem que você se sinta bem, e quando eles nascerem, você pode se esquecer deles, porque eles não são mais não nascidos”.
Além disso, muita gente vê essa possível decisão da Suprema Corte como apenas a primeira retirada de direitos de minorias. Ativistas LGBT alertam que os próximos alvos da Corte podem ser proibir casamentos entre pessoas do mesmo sexo, e até tornar a homossexualidade ilegal. “Não é questão de se, mas quando. Este é um diagnóstico de câncer no estágio 5 para direitos LGBT”, avisa a ativista Brynn Tannehill.
As faixas de “Faça O Conto da Aia virar ficção novamente” vão aumentar um monte. Tomara que as americanas consigam barrar esse retrocesso monumental.