Publico hoje um artigo da minha correspondente oficial do Chile, Isabela. A jornalista Isabela Vargas é mãe da Gabriela, feminista e integra a coordenação do coletivo Mujeres por la Democracia Santiago de Chile, que organizou os protestos do #EleNao no Chile.
No próximo dia 11 de maio, o gabinete de Gabriel Boric, presidente do Chile, completa dois meses de atuação. Durante esse período já ficou claro quem é o alvo principal na hora de atacar o governo. Trata-se da Ministra do Interior, Izkia Siches, que ocupa um cargo equivalente à vice-presidência.
Maio também é o mês das mães e, no Chile, a figura materna é quase uma entidade imaculada. Apesar disso, uma das primeiras críticas que a ministra recebeu ocupando o cargo público foi, justamente, ter exibido sua maternidade em redes sociais. Logo nos primeiros dias, Izkia subiu fotos em que levava sua filha (um bebê de 10 meses) ao gabinete do Palácio La Moneda e enquanto extraía leite materno.
Bastaram as publicações circularem para surgirem as primeiras críticas, vindas de mulheres, em sua maioria. O argumento era de que a ministra estaria se vangloriando de um privilégio, já que muitas mulheres trabalhadoras sempre tiveram que conciliar maternidade com seus trabalhos, sem contar com os mesmos recursos de Izkia. O fato é que ter uma mulher num cargo importante e que dê visibilidade à maternidade e à problemática da conciliação dos papeis que nós, mulheres, vivenciamos todos os dias, é um grande avanço, ainda que ela conte com seus privilégios pelo cargo que ocupa.
Disparos em visita ao sul
Também na primeira quinzena do governo, a ministra viajou à região da Araucania onde acontecem os conflitos na luta pela terra entre latifundiários e comunidades Mapuche, povos originários do Chile. Durante sua passagem pela localidade de Ercilia, foram registrados disparos e a ministra teve que ser deslocada rapidamente. Choveram críticas, inclusive, dos representantes dos mapuche alegando que, em sua tradição, o visitante devia ser previamente convidado e o assunto da visita anteriormente comunicado
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Conforme os dias de governo avançam, as críticas a Izkia se intensificam. Outro episódio que gerou diversos comentários negativos não apenas à ministra, mas também a sua equipe de assessores, foi uma declaração falsa durante uma visita à comissão de Segurança e Cidadania da Câmara dos Deputados. Na ocasião, a ministra Izkia Siches denunciou a volta de um voo com imigrantes expulsos durante o governo Piñera, versão que foi corrigida pelo ex-ministro Rodrigo Delgado. Siches, posteriormente, se retratou.
Atualmente, uma investigação está em curso para apurar a responsabilidade de quem entregou o falso relatório à ministra. Porém, depois desse episódio, representantes de vários setores (de direita e esquerda) começaram uma mobilização pedindo, inclusive, a renúncia da ministra. Posteriormente, ela foi respaldada pelo presidente Gabriel Boric.
Esquerda dividida
Um detalhe importante é que muitos dos eleitores de Boric votaram por Daniel Jadue (do Partido Comunista) nas primárias, portanto, dentro da própria esquerda ainda existe uma forte divisão no Chile, mesmo depois das eleições, apesar da votação expressiva de Boric. O fato é que muitas pessoas votaram contra a extrema-direita e não necessariamente pelo projeto político do atual governo.
As críticas não se limitam apenas aos episódios mencionados, eles são a ponta do iceberg para que a ministra seja detalhadamente analisada em absolutamente tudo o que faz, como se veste, etc. A cada episódio com Siches as críticas tomam conta das redes sociais, da mídia comercial, dos círculos de poder, e reforçam a narrativa de que ela não tem capacidade para o cargo que ocupa.
A experiência do Brasil
Isso me faz lembrar muito o que aconteceu com a presidenta Dilma Rousseff no Brasil. Criticada pela direita, por alguns setores da esquerda e massacrada pela mídia comercial, Dilma era milimetricamente analisada em absolutamente tudo o que dizia, fazia, vestia, comia, etc. Tudo isso para reforçar a narrativa de que ela não tinha competência nem habilidade política para negociar.
Essa construção era constantemente reforçada em reportagens com capas de revistas mostrando Dilma como uma mulher autoritária, histérica e muito brava. Argumentos que, geralmente, homens usam quando querem desqualificar uma mulher em sua área de atuação.
Os comentários constantemente negativos sobre a ministra chilena também me lembraram a campanha #meuamigosecreto de 2015. Naquele ano, mulheres expuseram atitudes veladas de machismo disfarçadas de normalidade. O movimento mostrou que a grande maioria das denúncias vindas de mulheres de esquerda tratavam da sua convivência com homens do seu campo político.
Esse acontecimento mostra que existe machismo na esquerda, ainda que seja velado, ou muitas vezes tratado com normalidade. O próprio presidente do Chile, Gabriel Boric, durante a campanha teve um caso de assédio a uma companheira de militância que veio à tona. Na época ele reconheceu o comportamento errado e se desculpou. Além disso, a vítima também veio à público dizer que a questão tinha sido resolvida internamente.
O que está em jogo?
O que tenho observado aqui no Chile, nas redes sociais em particular, é que muitas das críticas dirigidas à ministra vêm de homens do seu próprio campo político. Meu questionamento é: por que essas críticas não são dirigidas ao presidente Gabriel Boric? Está claro que a ministra Izkia virou o alvo principal e o objetivo é que ela sofra um grande desgaste até que, finalmente, seja removida do cargo.
Se isso acontecesse, seria uma grande derrota, não apenas para o governo e todas as mulheres que estão nele, mas também para as que apoiam esta gestão. É a primeira vez, na história do Chile, que uma mulher ocupa este cargo. O governo tem apenas dois meses de gestão, assumiu uma situação de crise social, econômica e política. Além disso, não conta com maioria no Congresso. Também existe uma forte pressão da oposição quanto à assembleia constituinte que está redigindo a nova constituição. Essa assembleia conta com o apoio do atual governo chileno.
Não espero que as pessoas mudem a sua forma de pensar por causa deste post, mas gostaria que provocasse uma reflexão. Por que sempre temos que ser tão rigorosas com as mulheres na política? Por que os homens ficam isentos de certas cobranças? As críticas devem e podem existir, mas elas precisam levar em conta vários aspectos, como o pouco tempo de governo. Ainda há um longo caminho a ser percorrido por essa gestão. Espero, sinceramente que Izkia continue em seu cargo até o final e saia fortalecida apesar de todas as críticas, justas e injustas, que têm recebido.