Não adianta fingir que se fala noutra coisa. O 94o Oscar que aconteceu ontem será lembrado unicamente por isso. O que é bem injusto pra todo mundo que não fez parte dessa treta.
O Oscar estava uma chatice só, o que não difere muito de outras edições. Eu até brinquei que, pra quebrar a monotonia da cerimônia, podiam puxar um coro de “Ei Bolsonaro vai tomar no c*” (aproveitando o que ocorreu no Lollapalooza). Aí surgiu o Chris Rock pra entregar o prêmio de documentário. Entre outras piadas nada memoráveis, ele olhou pra atriz Jada Pinkett-Smith, esposa de Will Smith há um tempão, e disse: “Jada, amo você. Mal consigo esperar para vê-la em G.I. Jane 2“.
G.I. Jane, ou Até o Limite da Honra, é um filme ruim de 1997 em que a Demi Moore faz uma militar com a cabeça raspada. Jada estava com a cabeça raspada. Depois ficamos sabendo (eu pelo menos não fazia ideia) que Jada tem alopecia, uma condição autoimune que causa a queda de cabelo e pelos no corpo. Ou seja, são várias referências que alguém precisa saber pra entender a piada, ou até pra entender por que aquele discurso foi ofensivo. E pra isso você precisaria estar prestando atenção no Chris Rock em primeiro lugar. Todos esses fatos ajudam a explicar por que a reação com o que se seguiu gerou um “what the duck?” internacional.
A câmera mostrou Will e Jada rindo (com a Lupita entre eles). Will continuou rindo, enquanto Jada fechou o sorriso e revirou os olhos. Chris viu essa mudança de postura de Jada e disse “Essa foi boa! Certo? Ok”.
Não vimos o que ocorreu antes, porque a câmera estava em Chris. Certamente Will olhou para Jada, notou sua reação, levantou-se e foi em direção a Chris. Chris, com as mãos pra trás, ainda disse um “Ô-ou”, e levou um tapão do Will. Chris então declarou: “Uau! Uau, Will Smith acabou de me dar uma surra!”
Will voltou ao seu lugar e gritou duas vezes: “Deixe o nome da minha esposa fora da p*rra da sua boca”. Chris respondeu: “Vou deixar”, emendou “Essa foi a maior noite da história da televisão”, e apresentou o vencedor de melhor documentário (Questlove por Summer of Soul, coitado, que fez um discurso que absolutamente ninguém registrou), enquanto todo mundo se perguntava: que diabos aconteceu?
Impressionante que, no Twitter, teve muita gente que achou que era armação! Nunca que palavrão numa transmissão ao vivo iria ser armação. Foi de verdade mesmo. E ficou um climão. Afinal, já tivemos um homem nu que subiu correndo no palco. Já tivemos uma edição em que deram o Oscar de melhor filme pro filme errado. Já tivemos piadas sem graça e ofensivas com todo mundo. Mas um astro estapeando outro? Não, essa foi a primeira vez.
Depois ficamos sabendo que Chris, Will e Jada já tiveram um desentendimento em 2016, quando Jada avisou que iria boicotar os Oscars devido à falta de representatividade negra, e Chris, que era o apresentador da cerimônia naquele ano, zombou dela no monólogo de abertura: “Jada boicotando os Oscars é como eu boicotando as calcinhas da Rihanna. Não fui convidado”. Se houve algum outro confronto nesses seis anos, não sabemos. Mas a ordem de Will em 2022 para manter o nome de Jada fora da boca de Chris soou como se fosse uma treta contínua.
Durante o intervalo, vimos depois , Denzel Washington e Tyler Perry conversaram com Will, que enxugou algumas lágrimas. As câmeras mostraram Jada e ele mais sorridentes, mas o climão continuou durante toda a cerimônia. Uma hora depois do tapa, Will foi chamado ao palco para receber seu primeiro Oscar (por King Richard). Discursou durante seis minutos, bastante comovido:
“Richard Williams era defensor da sua família. Neste momento da minha vida, eu sou tomado pelo que Deus me pede para ser e fazer deste mundo. Ao fazer esse filme, eu pude proteger uma das pessoas mais fortes e delicadas que já pude conhecer. Eu pude proteger as duas atrizes que fizeram os papéis de Venus e Serena Williams. Na minha vida, neste momento, estão pedindo para que eu ame e proteja as pessoas. Para ser um rio para o meu povo, para as minhas pessoas”.
Will lembrou que Denzel disse a ele que “É no seu maior momento que o diabo vai te tentar”. Pediu desculpas à Academia e a todos os seus colegas indicados (mas não a Chris): “A arte imita a vida. Eu pareci o pai louco, tal qual falavam do Richard Williams. Mas o amor faz você fazer coisas loucas”.
Eu achei o discurso dele bonito, embora religioso e problemático em várias partes. Foi inteligente de Will citar o personagem para se defender, mas, na verdade, Richard não foi um grande defensor da sua família. Ele foi um bom pai para Venus e Serena, mas teve vários outros filhos que simplesmente abandonou. Além disso, quem nomeou Will protetor das atrizes? Ou da Jada? A gente não pode se proteger sozinha? E aquilo do “amor faz você fazer coisas loucas” é perigoso. É a defesa de quem mata a ex porque não consegue superar o fim do relacionamento, por exemplo.
Por outro lado, ao falar sobre “seu povo”, Will mostrou que sabe o que está fazendo, que sabe que, mais que um astro mundialmente conhecido, ele é um modelo para muitas pessoas negras, talvez principalmente meninos negros. E ele quer ser um “recipiente do amor” (vessel for love) para seu povo, não alguém que tenta resolver conflitos através da violência. Ele ainda terá que declarar mais vezes que se arrepende do que fez e que não quer que outros o copiem.
Tomara que o pessoal que esteja aplaudindo a atitude de Will de estapear o Chris, que esteja dizendo “bateu foi pouco”, escute o discurso. Vi gente comparando o comportamento de Will com o de Zidane. Na final da Copa do Mundo de 2006, num dos momentos mais importantes de sua carreira, o francês Zidane se descontrolou, deu uma cabeçada no zagueiro, e foi expulso. A equipe se desestabilizou e a Itália ganhou a Copa. Anos mais tarde, ficamos sabendo o que levou à cabeçada. O zagueiro havia pedido desculpas por uma marcação mais dura, Zidane respondeu “Eu lhe darei minha camisa mais tarde”, e o zagueiro devolveu: “Prefiro a sua irmã”.
O zagueiro errou? Totalmente. Foi um escroto. Estava provocando, talvez quisesse cavar aquele descontrole. Zidane errou ao dar a cabeçada? Pô, óbvio que sim! Todo o retrospecto da partida e de sua carreira comprova isso . O mesmo com Will Smith. Ele sabia que iria ganhar o Oscar, era o favorito. É a coroação máxima de um ator ser reconhecido não só pelo público, mas pelos seus pares. E o tapa manchou isso.
Seria bacana também se Chris Rock se arrependesse, se ele e tantos outros comediantes finalmente entendessem que fazer piada com a aparência física de alguém, ainda mais se essa aparência decorre de alguma doença, não é engraçado.
Mas não está certo bater em quem quer que seja. Will e Jada poderiam ter dado uma dura no Chris depois da cerimônia, ao falar com a imprensa. Will poderia até ter falado no seu discurso ao aceitar o Oscar, “O que você disse sobre minha amada esposa Jada e o cabelo dela não é legal, cara. Não é piada”. Certeza que seria aplaudido por isso.
Do jeito que aconteceu, virou meme. Will será lembrado por esse descontrole por toda a sua vida (Chris também será lembrado pra sempre). E teve bastante gente cobrando a Academia de que Will deveria ter sido convidado a se retirar do auditório logo depois do tapa. Um jornal chegou a cogitar se Will não poderia perder a estatueta. Mas a Academia só lançou uma nota condenando todos os tipos de violência, e Chris não quis prestar queixa à polícia pela agressão.
Hoje Sean “Diddy” Combs, que também apresentou um Oscar ontem (dou um doce se alguém lembrar qual — ninguém se lembra de nada ontem fora o tapa), afirmou à mídia que Will e Chris fizeram as pazes: “Isso não é um problema. Acabou. Posso confirmar. É tudo amor. Eles são irmãos”.
Amanhã falo um pouco sobre algo mais do Oscar que não foi esse bafão. E do bolão, claro.
O post “O OSCAR EM QUE O WILL SMITH DEU TAPA NO CHRIS ROCK” foi publicado em 28th March 2022 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva