Mais de três anos depois do rompimento da barragem de Brumadinho , Edivaldo Moreira, técnico de manutenção da Vale, que atua na mina de Jangada, localizada a cerca de 6 km da mina do Córrego do Feijão, conta que só conseguiu diminuir a “dor” e a “revolta” com a tragédia a que sobreviveu com auxílio de medicamentos psiquiátricos e terapia. “Eu adoeci aqui [na Vale], eu não tinha problema antes”, diz.
As imagens do dia 25 de janeiro de 2019 continuam vivas em sua cabeça. “É como se tivesse um telão nas minhas costas passando sempre esse filme de tudo acontecendo. Foi tudo muito rápido, sabe? As pessoas ficando para trás, as pessoas caindo, e, quando você volta, você já não vê mais nada. É cena de terror, cena de filme de guerra. Isso fica. Por mais que eu esteja no momento de descontração, de alegria, de prazer, essa imagem fica sempre. Como se fosse contínua, ela só rebobina, roda 24 horas.”
O técnico já pensou em largar o emprego na Vale, mas diz ter preferido “continuar para ajudar alguém que talvez precise de ajuda e me ajudar também”. Edivaldo só não pisa na unidade de Feijão, onde a barragem se rompeu — como são bem próximas, os trabalhadores geralmente atuam nas duas minas. “Uma vez eu precisei descer, porque o bombeiro me chamou para coletar informação. Nesse dia a gente viu uma movimentação de bombeiros e de pessoas da Vale, eles haviam encontrado uma parte do corpo de um colega nosso da oficina. Não voltei mais.”
Edivaldo conta também que ficou com medo de sair da empresa e não encontrar trabalho, como aconteceu com Renato Cassimiro, que atuava na área de elétrica para a CBE Engenharia, uma terceirizada que prestava serviço para a Vale no dia do rompimento. De acordo com o Relatório de Análise de Acidente de Trabalho , de setembro de 2019, dois trabalhadores da CBE morreram no colapso da barragem. “Os meus amigos morreram lá e eles não fizeram nada para mim direito”, explicou Cassimiro, que decidiu sair por insatisfação e medo. “Uma empresa que não preza pelo seu funcionário não preza por ninguém, não”, explicou.
“Depois que eu saí da empresa, eu fui caçar emprego e estava difícil, porque as empresas ficavam me perguntando sobre o acidente. Eles achavam que eu não estava bem, entendeu? A gente passa por psicólogo quando vai fazer entrevista, aí eles falavam: ‘Não, mas você [se] acidentou, você deve estar… Você está com trauma ainda?’. Eu falava que não, mas eles [continuavam]: ‘Você acha que está bem para estar trabalhando?’. Eu falava que sim, mas não conseguia a vaga”, conta Cassimiro. “Eu mandava currículo, as empresas faziam entrevista e não me chamavam, aí eu ficava estranho. É estranho, né? Você ter um perfil bom e não conseguir emprego”, desabafa.
Cassimiro, que só conseguiu se salvar da lama por ter corrido muito — “se eu tivesse parado, eu tinha morrido” —, voltou a trabalhar no final de 2021. Com o que recebeu quando saiu da empresa comprou uma casa e, entre 2020 e 2021, viveu com a esposa e a filha de 2 anos do auxílio emergencial da pandemia de covid-19. As memórias do dia da tragédia continuam constantes: “Eu vi a lama, os trem tudo, as pessoas morrendo. Tanto que eu não consigo dormir direito, é muito pesado”.
Assédio moral
“Quem não morreu, [mas] morreu por dentro, não pegou quase nada [de indenização] e [ficou] só sendo chantageado, sendo cobrado das coisas”, diz Ronnie Silva, que por mais de 20 anos foi técnico de ferrovias e infraestrutura da Vale. Ele não estava no momento do rompimento da barragem, mas contou ter chegado logo após e ajudado nos resgates.
Silva permaneceu no emprego por mais de um ano depois do acidente — “era o meu sonho, minha vida”. Ficou auxiliando os bombeiros nas buscas que duram até hoje (ainda há seis desaparecidos), já que o trabalho que antes exercia naquela mina foi extinto. Segundo ele, quando a demanda nas operações de resgate ficou menos intensa, passou a ser pressionado para que se demitisse. “A gente já não tinha lugar, eles estavam largando a gente. O que dava pra entender é que eles queriam que você picasse mula e pedisse pra sair”, diz.
“Todo dia vinha gerente e falava: ‘Ah, mas tem muita gente à-toa’. Uai, não tinha nada pra gente fazer. A gente estava sofrendo tipo uma lavagem cerebral, sabe? Aquilo estava ficando chato demais. Eu perguntei: ‘Você quer que eu faça o quê?’. Aí eles [lembravam que] ‘não tem ferrovia mais’. Mas não fui eu que acabei com a ferrovia, uai, foi a barragem, foi eles mesmo. No final, nós tava muito jogado, até hoje a turma está muito chateada…”
O advogado Luciano Pereira, do Sindicato Metabase de Brumadinho, denuncia: “Em muitos casos houve uma verdadeira expulsão desses trabalhadores por parte da Vale”. E explica: “Eles [trabalhadores] voltaram para a empresa em uma condição de atingidos e vítimas do rompimento da barragem. O local onde trabalhavam deixou de existir e as tarefas às quais eles estavam vinculados também, e eles não tiveram uma realocação que viabilizasse a permanência”.
Na avaliação do advogado, casos em que a negligência quanto às necessidades dos atingidos resultou na saída deles da empresa foram mais comuns do que “propriamente uma demissão tradicional, a demissão pura e simples”. Pereira acredita que faltou um “olhar mais cuidadoso em relação aos trabalhadores sobreviventes, que carregam feridas muito abertas em relação a esse sofrimento e necessitam de um cuidado especial para a retomada da atividade profissional. A Vale não teve nenhum tipo de preocupação nesse sentido, o que é mais um dos elementos que nos indicam ausência de disposição da Vale de promover uma reparação integral pelo ocorrido”.
O mesmo teria ocorrido após o rompimento da barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015, na cidade mineira de Mariana, que matou 19 pessoas e espalhou mais de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos em 39 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo, de acordo com Georgina Mota, psicóloga especializada em saúde psíquica e trabalho e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela conduziu o estudo “Mineração e saúde mental: os efeitos do rompimento da barragem de Fundão” com os trabalhadores da Samarco, empresa controlada pela Vale e BHP Billiton, e conta que os sobreviventes “foram gradualmente perdendo o emprego” em um processo cheio de “insinuações” — a Samarco se utilizou de programas de demissão voluntária com o objetivo de dispensar ao menos 1.200 dos 3 mil funcionários. De acordo com a pesquisadora, os supervisores falavam: “Era pra pessoa pedir demissão porque ela ia sair depois. Eles se sentiam perdidos do ponto de vista da relação com a empresa, passaram de um ambiente bom de trabalho a um ambiente difícil, com muita violência. São tipos de violências pequenas, miúdas do dia a dia. Eles se sentiam obrigados a sair”.
Quando o trabalhador não cede, “entra a questão do assédio moral”, aponta Marta de Freitas, engenheira de segurança do trabalho e parte do Fórum Popular de Saúde e Segurança do Trabalhador e da Trabalhadora de Minas Gerais. “A empresa começa a colocar esse trabalhador em condições de trabalho inadequadas, começa a perseguir, começa um processo de degradação do trabalho”. “Eu costumo dizer que assédio moral não é um chefe louco que quer perseguir A, B ou C, assédio moral é uma ferramenta institucional no Brasil. É uma regra que a empresa [segue] se fulano não cede e tem estabilidade. O assédio moral institucional visa a fazer com que esse trabalhador que tem estabilidade peça demissão.”
A estabilidade de um ano é garantia da lei brasileira para os trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho. Aos sobreviventes de Brumadinho, foi fixada em três anos pela Ação Civil Pública 0010261-67.2019.5.03.0028 do Tribunal Regional da 3ª Região da Justiça do Trabalho. Durante o tempo estabelecido, os funcionários que aderiram ao acordo só poderiam deixar a empresa com o recebimento da pecúnia, que compreende o somatório dos salários a serem recebidos. Tanto a empresa quanto o funcionário poderiam solicitar o pagamento pela dispensa.
“Há uma tendência muito grande por parte das empresas, depois de um evento dessa magnitude, de promover toda uma reformulação interna, e as primeiras cabeças que rolam são as dos trabalhadores e, principalmente, dos menos qualificados, [com] salários mais baixos. Então era fundamental que a gente conseguisse uma estabilidade que desse ao menos esse respiro para o trabalhador, essa garantia de que, durante um prazo de pelo menos três anos, eles não seriam surpreendidos com demissão”, conta o advogado sindicalista sobre a medida que os trabalhadores obtiveram.
Mesmo garantida a possibilidade de demissão pela empresa com o pagamento da pecúnia, alguns sobreviventes contam histórias de pressão para que eles mesmos tomassem a iniciativa de deixar a mineradora. Para Pereira, esse tipo de ação busca mascarar a realidade: “A empresa não está preocupada em reparar o dano que ela ocasionou, ela está preocupada em preservar a imagem dela diante do grande público e diante dos seus acionistas. E essa ação subterrânea que a empresa promove para que os próprios trabalhadores se desliguem, a meu ver, tem a ver com essa preocupação de não contribuir para que haja uma imagem de que, mesmo depois de tudo que aconteceu, a empresa está demitindo os trabalhadores que sofreram com o rompimento. Me parece muito mais uma preocupação com a imagem do que qualquer outra”.
Em retorno à reportagem via assessoria, a Vale afirmou, por e-mail, que “reafirma seu compromisso com a Reparação Integral dos danos causados pelo rompimento da barragem”. “Após o rompimento e a paralisação das atividades minerárias da Vale em Brumadinho, a empresa realizou uma série de treinamentos e reestruturação organizacional, a fim de melhor realocar os empregados lotados em Brumadinho em funções novas ou existentes”.
A mineradora afirmou que 235 empregados aceitaram a pecúnia e foram desligados, “sendo cinco por iniciativa da companhia”. “Tanto no desligamento por vontade do empregado ou da empresa, os termos do acordo foram cumpridos e os trabalhadores receberam, em parcela única, o valor correspondente aos seus ganhos até o final do período de estabilidade, além dos demais direitos trabalhistas já assegurados pela CLT”, diz a Vale.
Psicofobia e desemprego
Mesmo fora da empresa, os trabalhadores que sobreviveram ao desastre têm de enfrentar o preconceito de outros empregadores, como relatou Cassimiro. “As pessoas chegam e [me] falam que vai procurar emprego, e, por estar muito abalado, as empresas recusam contratar essas pessoas, por achar que eles podem trazer um transtorno, um distúrbio lá”, corrobora Adilson Souza, líder comunitário do bairro Parque da Cachoeira, um dos mais afetados pela lama de rejeitos.
Naiana Andrade, mestre em saúde pública pela UFMG com pesquisa sobre os trabalhadores sobreviventes de Brumadinho, ouviu diversos relatos de psicofobia , que é o preconceito contra portadores de transtornos mentais. Ela explica que a psicofobia revitimiza as vítimas do rompimento: “Você [o trabalhador sobrevivente] passou por todo o trauma de ver seus amigos morrerem, ter que correr contra o tempo, a lama por um triz de te alcançar… Foram momentos de desespero e as imagens ficam até hoje martelando na cabeça deles, os barulhos, as perdas dos amigos, o pessoal gritando socorro. Tudo isso pode levar a uma situação traumática. Porém a gente não pode isolar ou não dar oportunidade a uma pessoa que tem, ou que você acha que tem, transtorno mental”. No caso dos sobreviventes, a exclusão ocorre pela suposição, já que “eles não levaram nenhum laudo quando eles foram fazer o processo”. “Isso já é um preconceito”, explica Naiana, que ressalta que tais condições não impedem as pessoas de trabalhar.
Nesses casos, porém, “é muito difícil fazer a prova que eles não foram contratados por preconceito”, adverte o advogado sindicalista, que também já ouviu “muitos relatos de trabalhadores que sentiram isso”. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) conduz campanha pela criminalização da psicofobia desde 2011.
A questão é crucial no momento porque, com o fim da estabilidade, os que continuam na Vale não sabem se serão demitidos. No dia 25 de janeiro passado, acabou o prazo de três anos de estabilidade dos sobreviventes, como Leandro Borges, operador de máquinas e de caminhões, que continuou na Vale depois de ter sido soterrado pela lama e ficado um ano afastado em função de lesões nos ossos e músculos. Um dos motivos de ele ter escolhido ficar na empresa, onde diz viver o luto “todos os dias”, foi a garantia do plano de saúde para a família: sua esposa descobriu um câncer de mama pouco depois do acidente. Agora, “com questão da estabilidade, que acabou, o que vai acontecer daqui pra frente ninguém sabe, não. É uma interrogação”.
Borges foi encontrado pelos colegas Elias Nunes e Sebastião Gomes quase sem vida. Juntos, conseguiram chamar atenção dos bombeiros e ele se salvou. Nunes, que continua na empresa, também não sabe se vai continuar. “Nunca falaram nada. A gente está trabalhando como antes.” Ele atua na reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem e auxilia os bombeiros na busca pelos seis desaparecidos. “O que me mantém é isso, essa vontade de tentar fechar este ciclo e de tentar ajudar a reparar essa degradação. Isso que mantém a gente firme, e primeiramente Deus”. “O nosso trabalho é muito importante”, avalia ele, que só se permite pensar em sair “depois que [os bombeiros] encontrarem todos [os desaparecidos]”.
Já Gomes trabalhou por nove meses depois do rompimento e decidiu deixar a empresa por pressão dos familiares. “Minha família ligava todo dia pedindo pra eu sair de lá.” Contou que, durante o tempo que permaneceu, “o clima não era bom, não era nada agradável”. “Por mais que eu quisesse me manter firme nas questões do que tinha acontecido, sempre chegava um amigo pedindo consolo, chorando, me abraçava [e falava] assim: ‘Poxa, achou o fulano de tal hoje, achou mais um amigo, achou um parente’. Isso pra gente era muito chocante, sabe? Eu não me sentia em condições psicológicas de estar lá, porque as cenas eram muito fortes pra mim.”
Ele diz que se preocupa com os colegas que permaneceram na mina: “Tem três amigos meus que vão ser mandados embora este mês agora. [Quando tomei a decisão de sair] eu pensei: ‘Eu tenho certeza que assim que cumprir esses três anos eles vão mandar muita gente embora, então vou aproveitar e sair agora, pego a pecúnia e faço algum projeto meu’”.
Para a psicóloga Georgina Mota, os trabalhadores sobreviventes que permaneceram na empresa estão agora penalizados pela possibilidade de demissão. “Essa vivência que o pessoal de Brumadinho está tendo, a gente pode dizer que ela leva, sim, a sofrimentos psíquicos comuns”, explica. Naiana Andrade vai na mesma direção: “Eles estão vivendo desde o dia 25 de janeiro de 2019 — e agora mais do que nunca — em uma grande ansiedade do que vai ser pela frente.”
De acordo com o sindicato, ao menos cinco sobreviventes contratados diretamente pela Vale já foram demitidos após o fim da estabilidade, mas não é possível afirmar que a demissão se deu “pelo fato deles serem sobreviventes da barragem”. Até o momento, o sindicato trabalha com a hipótese de que os trabalhadores, já com anos de carreira na empresa e salários mais altos, foram demitidos para serem substituídos por novos funcionários com menor remuneração, como explicaram o advogado Luciano Pereira e o presidente da entidade, Agostinho José de Sales. Já a Vale afirmou que “desde o fim do período de estabilidade, nenhum dos trabalhadores próprios contemplados neste acordo foi desligado da empresa”. A mineradora não respondeu sobre os terceirizados, que também tiveram estabilidade de três anos e agora já podem ser demitidos.
Depois da tragédia
O consumo de remédios psiquiátricos em Brumadinho aumentou 31% em comparação com 2018, ano anterior ao rompimento. De acordo com estudo sobre mineração e saúde mental , transtornos mentais como insônia, fadiga, ansiedade, esquecimento, irritabilidade e dificuldade de concentração são comuns também entre os trabalhadores da barragem rompida em Mariana. A pesquisa indicou que 60% dos trabalhadores participantes apresentavam transtornos psíquicos comuns, uma taxa que gira em torno de 10% para a população.
Outra pesquisa da UFMG , que avaliou pessoas que tiveram suas casas afetadas pela lama derramada no rompimento de Fundão a partir de diagnósticos clínicos, encontrou prevalência de depressão de 28,9% na população de pessoas atingidas, cinco vezes maior do que a descrita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a população brasileira em 2015 (5,8%). Além disso, 12% dos avaliados apresentaram transtorno de estresse pós-traumático relacionado ao desastre; e 32%, transtorno de ansiedade generalizada, prevalência três vezes maior do que a brasileira, 9,3%.
“Os desastres afetam as pessoas que vivem em comunidades, colocando elas em uma situação de vulnerabilidade em saúde”, explicou à reportagem Maila Castro, autora do estudo, médica psiquiátrica e professora da UFMG. Dos entrevistados, 21,8% ainda estavam desempregados mais de dois anos depois da tragédia.
De acordo com as pesquisadoras, o impacto social do desastre, que destruiu casas e comunidades inteiras, está entre as justificativas para a manutenção de altas taxas de transtornos mentais anos depois. No subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, “houve uma desorganização”, explicou Georgina Mota. “Vários perderam o emprego, porque trabalhavam com produção, e tiveram que ir para empregos urbanos, como faxina. Eles passaram a viver em casas alugadas, se distanciaram entre si e passaram a ter dificuldades de contato, porque Bento Rodrigues favorecia que os pais trabalhassem e os avós tomassem conta das crianças, que podiam brincar nas ruas. Quando eles vão para Mariana, já não têm a liberdade de brincar na rua, porque é uma cidade que tem trânsito. Houve aumento do índice de agressão às mulheres e aumento de alcoolismo.”
O líder comunitário Adilson Souza, que ainda vive em Brumadinho, contou que lá também as relações sociais mudaram muito depois do colapso. “Vizinho não conhece vizinho mais, entendeu? Ninguém conhece ninguém mais, saiu mais de 60% da população e chegaram umas outras pessoas que a gente não conhece. O bairro hoje está inviável à moradia para quem viveu lá.” Em 2019, os registros de tentativas de suicídio aumentaram 46% em relação a 2018 na cidade, de acordo com apuração da jornalista Daniela Arbex, autora do livro Arrastados, da editora Intrínseca , sobre a tragédia.
É para reparar esse tipo de dano, imaterial e que não pode ser substituído, que existe a indenização, explicou à Pública o advogado trabalhista Paulo Renato Fernandes, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e da Faculdade Getulio Vargas (FGV). “Se o trabalhador ingressou na empresa andando, falando, enxergando, mentalmente são e fisicamente são, ele não pode sair de outro modo.” “Pela lei, quem sofre lesão em acidente de trabalho tem direito à restituição integral. Se a pessoa ficou com problemas psiquiátricos, ela tem direito ao tratamento.”
Porém muitos dos entrevistados não recebem mais auxílio da Vale e consideram que “a indenização é pouco pelo que aconteceu”, como afirmou Cassimiro. “É uma indenização que não repara os danos emocionais, porque mentalmente, psicologicamente, me atingiu muito, muito mesmo”, concordou Edivaldo. A empresa afirmou que “o acordo com o MPT [Ministério Público do Trabalho] assegurou aos trabalhadores assistência psicológica e psiquiátrica por três anos”.
Para a Vale, os sobreviventes nem deveriam ser considerados atingidos
Só em dezembro de 2021 a totalidade dos sobreviventes contratados pela Vale teve o direito à indenização reconhecido pela empresa. Dessa forma, alguns, como Ronnie Silva, que ficou um ano sem trabalhar por estar suspenso pela companhia, só receberam o dinheiro em janeiro de 2022, quase três anos após o rompimento. O advogado do Sindicato Metabase de Brumadinho explica que o processo de reconhecimento dos atingidos foi longo e permeado por acordos individuais, o que enfraqueceu a demanda coletiva.
“A Vale desde o início não reconhecia o direito deles a uma reparação, a gente tentou durante algum tempo viabilizar essa reparação por meio de acordo, mas não foi possível, então nós ajuizamos uma ação coletiva pelo sindicato”, explicou Pereira, que representou os trabalhadores diretos da companhia.
Em resposta à ação do sindicato , a Vale sustentou que não pretendia indenizar os que se salvaram da morte. “Não há possibilidade de assegurar indenização por danos morais ou materiais às ‘vítimas sobreviventes resgatadas’ ou para as ‘vítimas sobreviventes’ que ‘não estavam no local’, pois não há indicação precisa de qual o dano efetivamente experimentado, qual a extensão desse dano e qual o nexo de causalidade entre o dano e o acidente que culminou no rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão”, argumentou na peça. O sindicato havia pedido indenizações diferentes para os sobreviventes que estavam no dia do rompimento e os que não estavam na empresa: R$ 1,5 milhão para os primeiros e R$ 1 milhão para os demais.
Depois de ter negado o pedido, a Vale ofereceu R$ 250 mil de indenização aos trabalhadores diretos que estavam no dia do rompimento e R$ 80 mil aos que não estavam na mina, valores recusados pelo sindicato. A empresa então passou a procurar os trabalhadores para oferecer acordos individuais, o que “não é ilegal, mas imoral”, na avaliação do advogado.
Depois de anos sem conseguir aumentar o valor e vendo alguns trabalhadores terem decidido fechar os acordos individuais por precisarem do dinheiro, o sindicato voltou atrás e aceitou valores mais baixos do que acreditavam que deveriam. “Foi o possível. Se dependesse da Vale, os acordos teriam sido fechados com valores muito menores do que esses”, argumentou o advogado responsável pela ação.
“O fato é que os nossos sistemas poderiam estar mais apetrechados para termos mais remédios judiciais e remédios judiciais mais rápidos para este tipo de lesão”, avalia Fernandes, professor e advogado trabalhista, ressaltando que é difícil fazer frente a uma grande corporação. “As pessoas são sobreviventes de uma grande tragédia ambiental, já estão traumatizadas, muitas vezes desabrigadas e com parentes falecidos, e vão ter que enfrentar uma batalha judicial com uma multinacional que pode durar 10, 20 anos? Como as pessoas vão lidar com essa situação? É injusto.”
Em resposta à reportagem, a mineradora afirmou que está “aberta à conciliação” e “vem realizando acordos de indenização individual com os trabalhadores sobreviventes e lotados na mina do Feijão e Jangada”. “Até a presente data, quase 13 mil pessoas foram indenizadas pela companhia em Brumadinho e territórios e evacuados, o que representa um valor total de mais de 2,7 bilhões”.
38 barragens mineiras estão em situação de emergência
Minas Gerais é o estado brasileiro com o maior número de barragens: 350 das 905 espalhadas pelo Brasil. Do total, apenas 454 estão enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), criada pela Lei nº 12.334, de setembro de 2010, que avalia risco e registra a evolução dos casos. Das barragens inseridas na política, 46 são de risco alto — 39 em Minas Gerais — e 54 de médio risco — das quais 26 estão no Mato Grosso.
De acordo com dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) referentes ao mês de janeiro de 2022 , existem 42 barragens de mineração em situação de emergência, 38 em Minas Gerais, duas no Mato Grosso, uma no Pará e uma no Amapá. As três barragens mineiras com nível mais alto de emergência (nível 3) são da Vale e se localizam nas cidades de Nova Lima, Ouro Preto e Barão de Cocais. À reportagem, a mineradora afirmou que “as três estruturas já têm suas respectivas contenções finalizadas e o monitoramento segue sendo realizado 24h por dia, 7 dias por semana, em tempo real, por meio do Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG)”.
A barragem B1 de Brumadinho já dava sinais de instabilidade desde 2017, e o Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) já tinha até calculado uma estimativa de mortos: 200. Ainda assim, o desastre não foi evitado. Uma das explicações está na baixa autonomia financeira da ANM, o que estaria fragilizando a fiscalização , de acordo com pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP) e da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Eles apontam que o orçamento executado pela ANM entre 2003 e 2020 — apenas 54% do disponível — “não foi suficiente para o gerenciamento de recursos humanos, físicos e tecnológicos da autarquia no período, fundamentais para que a agência possa desempenhar adequadamente suas funções”.
Em 25 de fevereiro de 2019, foi aprovada a Lei Estadual 23.291 , apelidada de “Mar de Lama Nunca Mais”. O projeto havia sido proposto em 2016, após o rompimento de Fundão, mas só virou lei um mês depois do desastre em Brumadinho. A lei previa que fosse vedada a concessão de licença a novas barragens de resíduos feitas a partir do método de alteamento a montante e que as já existentes fossem descaracterizadas no prazo de três anos após o sancionamento, ou seja, no dia 25 de fevereiro de 2022.
Em resposta ao pedido de acesso à informação feito pela reportagem, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Sede) informou que apenas cinco das 54 barragens de alteamento a montante do estado concluíram sua descaracterização, o que inclui a desativação e drenagem. A Vale, mineradora com o maior número de barragens do tipo no estado (19 de 54), entregou três descomissionamentos no prazo: Barragem 8B, na cidade de Nova Lima; Dique Fernandinho, em Rio Acima; e Dique Rio do Peixe, em Itabira.
Dos 16 empreendimentos restantes, três continuam sem data definida para o descomissionamento, e o governo de Minas Gerais já tem ciência de que descumprirão o prazo da Lei 23.291/2019, como registrado na resposta recebida por LAI. Caso as previsões definidas sejam cumpridas, as próximas barragens descaracterizadas pela responsável do rompimento que matou 272 pessoas em Brumadinho serão entregues em setembro de 2022 — se trata da Baixo João Pereira, em Congonhas; e da Dique Ipoema, em Itabira. A fiscalização e o acompanhamento do processo competem a órgãos e entidades do Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sisema) , subordinado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Minas Gerais, além da própria ANM, em nível federal.
Com o fim do prazo próximo, no dia 4 de fevereiro a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o trecho da lei que trata da punição a mineradoras que não cumprirem o prazo — a legislação determina que as empresas que não se adequarem perderão as licenças ambientais, fundamentais para as atividades econômicas. Em entrevista à Folha de S.Paulo , o presidente da Fiemg, Flávio Roscoe, afirmou que a lei foi aprovada “no calor do momento”. A entidade acionou a Justiça contra ambientalista do Projeto Manuelzão, da UFMG, por conta de postagem em que insinua que a Semad está atuando contra o meio ambiente e tece críticas à Fiemg.
A Vale afirmou estar trabalhando para a “eliminação de todas as suas barragens alteadas a montante no Brasil, no menor prazo possível”. Os dados enviados à reportagem sobre os números de descomissionamento se chocam com os da Sede: a empresa garante ter finalizado o processo em quatro barragens em Minas Gerais — não três. “Para este ano, está prevista a conclusão das obras e reintegração ao meio ambiente de mais cinco estruturas.”
A movimentação chegou também à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). No dia 15 de fevereiro, foi apresentado o Projeto de Lei (PL) nº 3.497/2022 , do deputado estadual Virgílio Guimarães (PT), que prevê o aumento dos prazos para 2025 ou 2027, dependendo do tamanho das barragens. A proposta é criticada por entidades civis, como o Projeto Manuelzão, que considera que o deputado “insiste na defesa de interesses das grandes mineradoras”. Já Guimarães — que retirou de tramitação projeto semelhante , de outubro de 2021, pela má repercussão — argumenta que o novo PL “ajusta regras de procedimentos na exploração mineral em função de diretrizes da Agência Nacional de Mineração” e defende a importância da mineração segura para o estado de Minas Gerais. O projeto está para ser avaliado na Comissão de Constituição e Justiça; até aqui, vale o prazo das leis estadual e federal: 25 de fevereiro.
Mesmo que o PL seja aprovado, a Vale planeja descumprir o novo prazo: A Barragem Sul Superior, da Mina de Gongo Soco em Barão de Cocais; e a Barragem Doutor, da Mina de Timbopeba em Ouro Preto esperam ter seu descomissionamento finalizado apenas em dezembro de 2029, de acordo com retorno via LAI. Em resposta a reportagem, reforçou o compromisso de perder o prazo: “A atualização mais recente indica que 90% das barragens deste tipo serão eliminadas até 2029 e 100% até 2035. As estruturas com maior prazo são aquelas de maior risco, mais complexas e que envolvem um volume de rejeitos maior”. Leia na íntegra .
Fonte
O post “Trabalhadores que sobreviveram ao desastre da Vale em Brumadinho lutam pela sobrevivência” foi publicado em 3rd March 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública