Por Fabio Teixeira , da Thomson Reuters Foundation*
Costumava nevar na cidade goiana de Minaçu, os moradores gostam de contar aos visitantes. Mas o pó branco que cobriu as ruas e telhados de 1967 até o final dos anos 1980 estava longe de ser um floco de neve inofensivo. Era um cancerígeno perigoso: o amianto.
A “neve” é uma lembrança de quando a mina de crisotila (conhecida como amianto branco) da cidade carecia de procedimentos de segurança para conter o pó e impedir que ele se espalhasse pela área urbana próxima.
Para muitos moradores, aqueles eram os bons velhos tempos, quando a cidade de 28 mil habitantes no interior do estado de Goiás prosperava e os empregos eram abundantes na Sama SA, empresa que extrai amianto da Cana Brava, uma mina que cobre uma área quase tão grande quanto Minaçu.
O amianto é uma fibra à prova de fogo usada como material de construção e em produtos industriais, mas também é conhecido como uma substância que pode causar câncer.
Cerca de 107.000 pessoas morrem a cada ano de doenças relacionadas ao amianto, segundo a Organização Mundial da Saúde em um artigo de 2014. Os níveis locais de mortes relacionadas ao amianto, diz a OMS, só diminuem décadas após o término do uso.
Devido a esses riscos à saúde, o amianto é proibido em cerca de 60 países.
O Brasil impôs a proibição em 2017, mas uma lei estadual em disputa na Justiça mantém a mina de Cana Brava em operação.
Minaçu está agora em uma encruzilhada. É o lar da última mina de amianto do Brasil – mas o mineral não sustenta mais a cidade, que passou por tempos econômicos difíceis.A qualquer momento, uma decisão judicial pode suspender a atividade de mineração, como fez por 16 dias no ano passado, ou encerrá-la definitivamente.
Ao lado de um recente boom de contratações, graças ao desenvolvimento de uma nova mina de terras raras na região, alguns moradores acreditam que Minaçu deveria se reinventar e deixar de lado o amianto.
Para outros, sem amianto, a cidade acabou.
“Se a Sama parar, a cidade para”, disse Joaquim de Souza, 54, que mora perto do maciço de rejeitos de amianto de Minaçu.
Entre 1985 e 1991, Souza trabalhou para as empreiteiras da Sama, ensacando o pó branco. Agora, seu filho trabalha para a Mineração Serra Verde, mineradora de terras raras, que planeja fornecer elementos para turbinas eólicas, telefones celulares e carros elétricos.
Souza acredita que Serra Verde é o futuro, mas não pensaria duas vezes antes de deixar o neto trabalhar na Sama quando crescer. “Não há perigo”, disse ele.
‘Mãe de Minaçu’
Depois que o Supremo Tribunal Federal encerrou o uso de amianto no país em 2017, moradores protestaram em camisetas com o slogan “Defendemos o amianto crisotila”, segundo Arthur Pires Amaral, professor de antropologia da Universidade Federal de Catalão.
Desde 2019, quando os legisladores goianos aprovaram um projeto de lei permitindo a continuidade da mineração de amianto para fins de exportação, toda a produção foi enviada para o exterior.
Essa lei agora está sendo contestada na Justiça pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho do Brasil.
O amianto está entrelaçado com a identidade de Minaçu. Negócios, ruas, um rio e até uma clínica do governo têm o nome de amianto crisotila.
Pedras cheias de fibras de amianto são usadas para marcar locais importantes, como a entrada da cidade. Seu bairro de luxo – chamado Sama Village – tem telhados de amianto em todas as casas.Muitos se referem a Sama – que é de propriedade da empresa de materiais de construção Eternit – como a “mãe de Minaçu”.
“É uma mãe que cuida, que alimenta”, disse Amaral, que deve publicar um livro sobre a cidade em fevereiro. “Mas também é uma mãe perversa, que deixa as pessoas doentes e depois vira as costas para elas.”
A Sama auxilia todos os trabalhadores que tiveram problemas de saúde devido à exposição comprovada ao amianto, disse a Eternit em comunicado emitido em resposta às perguntas da reportagem.
“Não há estatísticas confiáveis sobre o número de trabalhadores expostos às fibras de crisotila que desenvolveram doenças pulmonares no Brasil, pois um grande número de diagnósticos se mostrou errado após a realização de um exame mais preciso”, acrescentou a Eternit.
Pedágio humano
Quando a indústria do amianto era forte em Minaçu, a Sama financiou eventos culturais, religiosos e esportivos, e foi um grande doador político em 2012, mostram dados eleitorais.
“A (Sama) escolheu os prefeitos, os vereadores – e dominou a igreja. Você tinha padres e pastores defendendo o amianto durante os cultos”, disse Amaral.
Em Minaçu, pode ser um tabu criticar a Sama publicamente – mas milhares assinaram acordos com a empresa discretamente.
Já em 2002, a Sama havia feito mais de 3.000 acordos extrajudiciais em que concordou em fazer pagamentos ou fornecer seguro de saúde a ex-funcionários, alegaram promotores do trabalho em um processo em andamento aberto em 2020.
A empresa também é criticada em processos judiciais movidos por indivíduos e organizações sem fins lucrativos, bem como por promotores federais e trabalhistas.Olivia, que pediu que seu nome verdadeiro não fosse divulgado por temer repercussões na comunidade local, processou por danos relacionados à morte de seu pai, funcionário da Sama de 1982 a 1994, que morreu de câncer de pulmão 14 anos depois.
Em novembro, a Justiça do Trabalho de Goiás ordenou à Eternit que pague os exames médicos regulares de todos os ex-funcionários da mina pelos próximos 30 anos e os honorários médicos de qualquer trabalhador que desenvolva problemas de saúde “provavelmente associados à exposição ao amianto”.
A ABREA, associação brasileira de pessoas expostas ao amianto, também está processando a Sama. Sua fundadora, Fernanda Giannasi, faz campanha contra o amianto desde 1995 e viu muitos de seus membros morrerem de doenças relacionadas ao amianto, disse ela.
“Quando eles morrem, para mim é uma perda como se fosse alguém da minha família”, disse Giannasi, inspetor do trabalho aposentado.
Mas em Minaçu, muitos ainda negam que o amianto seja prejudicial.
“A maioria dos trabalhadores de lá fumava. Aí começaram a passar mal por causa do cigarro e acusaram Sama, (dizendo) que era amianto”, disse o vereador de Minaçu Wedney Divino de Miranda.
Exportando riscos
Nos primeiros nove meses de 2021, as exportações de amianto da Eternit cresceram 165% em relação ao mesmo período de 2020, mostram suas demonstrações financeiras. Dos R$ 833 milhões da empresa (US$ 151,08 milhões) em receita líquida, R$ 197 milhões foram obtidos com o amianto.
A Sama é a terceira maior produtora de amianto crisotila do mundo e já exportou para mais de 150 países, informa o site da empresa.
Segundo a Eternit, esses países incluem Estados Unidos, China, Rússia, Alemanha, Índia, Indonésia e Malásia.
O amianto brasileiro põe em perigo os trabalhadores no exterior que lidam com o mineral, disse Linda Reinstein, fundadora da Amianto Disease Awareness Organization, uma organização sem fins lucrativos com sede nos EUA.
“A maioria das pessoas… não entende que a exposição e a morte continuam hoje”, disse ela.
Sem mercado interno, a Sama não gera mais receita tributária ou empregos suficientes para atender às necessidades de Minaçu, disse o prefeito Carlos Leréia.
Como congressista, ele era um acirrado defensor do amianto. Como prefeito, disse que a Sama ainda tem um papel a desempenhar na economia local, mas Minaçu também deve desenvolver outras indústrias, como o turismo.Leréia tem medo de depender demais da Serra Verde, empresa de minerais raros, pois acredita que deixará de gerar empregos quando a mina estiver em operação.
Em sua fase de construção, a mina Serra Verde criou cerca de 1.600 empregos, disse seu vice-presidente executivo Luciano Borges durante uma apresentação online em setembro passado.
Quando estiver operacional, a mina empregará cerca de 700 pessoas de cidades próximas, incluindo Minaçu, acrescentou.
A Serra Verde recusou um pedido de entrevista.
A Sama, por sua vez, emprega cerca de 375 pessoas diretamente e mais 60 por meio de terceiros, segundo a Eternit.
Pagando pela transição
A situação de Minaçu não é única. Outrora um grande produtor, a cidade canadense de Amianto mudou seu nome em 2020 para se afastar do estigma e agora está tentando diversificar sua economia.
O custo da transição para modelos econômicos mais seguros e sustentáveis deve recair sobre aqueles que lucraram com o amianto, disse Laurie Kazan-Allen, da International Ban Amianto Secretariat, uma organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido.
No caso de Minaçu, isso significa que a Eternit, as autoridades do estado de Goiás e o governo brasileiro devem ajudar a cidade a traçar um futuro alternativo, disse ela.
Questionada por quanto tempo planeja continuar explorando o amianto, a Eternit disse que isso “dependeria de processos judiciais em andamento”.
Enquanto isso, está começando a se reposicionar como produtora de telhas de energia solar, dizendo que se considera “uma empresa sustentável”.
Mas as telhas solares não são feitas em Minaçu, o que significa que não podem substituir diretamente o emprego de amianto gerado lá.
Kazan-Allen disse que a Eternit deveria reservar dinheiro todos os anos para reabilitar Minaçu quando chegar a hora.
“Tem que ser um esforço coletivo, e eles têm que explorar as opções. Porque mais cedo ou mais tarde, a mina vai fechar”, disse ela.
*Fabio Teixeira é correspondente da Thomson Reuters Foundation no Brasil. Escreve matérias com foco em abusos trabalhistas, questões climáticas e meio ambiente. Foi repórter no Globo por cinco anos e no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro por três.
Esta matéria foi originalmente publicada em inglês na TRF .
Fonte
O post “Exportando riscos: cancerígeno e banido em 60 países, amianto brasileiro continua a abastecer o mercado mundial e é desafio para cidade goiana” foi publicado em 2nd fevereiro 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração