Na última década, as portarias que autorizam a captação das águas e a supressão de vegetação no oeste baiano têm algo em comum: o nome de Márcia Cristina Telles. Servidora de carreira da Secretaria de Meio Ambiente da Bahia desde 2006, ela assumiu a direção geral do Inema, responsável por liberar e renovar as outorgas hídricas, em 2012. Em maio de 2021, ela passou também a ser chefe de si mesma, tornando-se supervisora de seu próprio trabalho, quando foi nomeada secretária interina do Meio Ambiente pelo governador Rui Costa (PT). A nomeação foi alvo de críticas de organizações sociais e de uma ação judicial movida por servidores do órgão ambiental. O acúmulo de funções durou até o último sábado, dia 4 de dezembro, quando uma nova diretora foi nomeada para o Inema e Márcia passou a ser secretaria efetiva do Meio Ambiente.
Atualização: o texto foi corrigido às 16h40 após a reportagem confirmar a nomeação da nova diretora do Inema em lugar de Marcia Telles no último sábado, 04/12/2021, conforme publicado no Diário Oficial da Bahia. Trechos do texto e o título da reportagem foram alterados.
Na carta aberta contra a nomeação direcionada ao governador da Bahia, as organizações socioambientais ressaltam que o modelo de gestão “tem sido marcado pela liberação meramente cartorial de licenças ambientais, de autorizações de supressão de vegetação nativa e de outorgas de uso de recursos hídricos; sem monitoramento eficaz na proteção dos biomas estaduais e das unidades de conservação e com atividades limitadas de sensibilização e educação ambiental”.
O texto lembra ainda que a ex-diretora-geral do Inema e secretária da Sema teria afirmado em evento público que a autarquia funciona como um cartório. Segundo as organizações socioambientais, “demonstrando total incompreensão do relevante papel que o órgão ambiental estadual deveria exercer na implementação de políticas públicas ambientais”.
Para Maurício Correia, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR) , o Inema sob comando de Márcia Telles seria “impermeável” às demandas e apontamentos das comunidades e da sociedade civil, enquanto estaria sempre disponível para os irrigantes. “O Inema tem sido um protagonista dessa relação promíscua do estado e do agronegócio. Isso aparece nos números do volume [de água] outorgado, nos números do desmatamento. É em escala industrial, sem estudos, sem consulta às comunidades afetadas”, diz.
Ontem, a Agência Pública revelou quem são os privilegiados com a água do Cerrado baiano. Os nomes estão ligados a associações do agronegócio que podem captar de graça até 1,8 bilhão de litros diários, um volume capaz de abastecer 11 milhões de pessoas.
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De Spengler a Telles
Após a gestão na Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do gaúcho Eugênio Spengler, que faleceu em fevereiro de 2021 e ficou no cargo entre 2010 e 2017, a legislação ambiental da Bahia nunca mais teria sido a mesma, dizem as fontes consultadas pela reportagem.
Na gestão de Spengler à frente do órgão ambiental, teria havido o esvaziamento do poder de órgãos participativos, redução na transparência e o estabelecimento da “Licença Ambiental por Adesão e Compromisso” (LAC) – o autolicenciamento que a bancada ruralista tenta implementar em nível nacional. Além disso, os órgãos que concediam autorização para captar água (Ingá) e para desmatar (IMA) foram fundidos, criando o Inema, o que teria impulsionado um maior número de outorgas hídricas. Em 2015, servidores do Inema publicaram carta aberta denunciando o que consideraram um desmonte.
“Décadas atrás, na publicação da Lei de Meio Ambiente , [a Bahia] era uma protagonista em ter uma legislação participativa, e muitas dessas coisas foram retrocedendo. Muitas coisas que estão aí como proposta de retrocesso no PL nacional [Projeto de Lei 3.729 , do Licenciamento Ambiental] foram originadas na Bahia”, explica a promotora do Ministério Público da Bahia (MP-BA) Luciana Khoury, que atua especialmente na pauta de meio ambiente e recursos hídricos .
Estudos do MP questionam os dados do governo
Uma nota técnica feita a pedido do MP da Bahia em 2018 já questionava os dados utilizados para liberação e renovação de outorgas de água. O material, solicitado pelo Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco , do MP, vai na contramão de estudos bancados pelo agronegócio , por vezes citados como prova da abundância no oeste baiano.
“Estão sendo levadas em consideração pelo órgão gestor séries históricas antigas, não contemplando as vazões dos últimos anos, período em que os rios estão completamente modificados, como se não tivesse ocorrido um período de grande estiagem no ‘Velho Chico’ nos últimos 10 anos”, segundo consta na análise feita a pedido do MP, consultada pela Pública.
O material indica ainda que, só entre 1997 e 2007, as vazões de rios importantes como o Arrojado e o Corrente diminuíram cerca de 15%. A análise conclui que “há a concessão de outorgas para a captação de grandes vazões em rios em que não existe qualquer tipo de medição” no Cerrado baiano.
“Tem uma visão que prevalece no Inema: sem muita explicação, muitos enxergam as cobranças do Ministério Público [estadual] e da sociedade civil como ‘truculência’”, disse um servidor do Meio Ambiente à Pública.
Sua identidade, como a de outros consultados, será mantida em sigilo por pedido das próprias fontes. “Há enorme pressão nas unidades regionais [do Inema ] para que os servidores não tenham posicionamentos contrários à diretriz [do governo]. Existe um ‘desenvolvimentismo’ silencioso”, disse outro servidor.
As fontes ouvidas pela reportagem alegam que há uma lacuna de normas internas no setor ambiental baiano. Para eles, não há, por exemplo, um arcabouço legal para análises integradas, tidas como necessárias antes da liberação e renovação de outorgas. “As coordenações de monitoramento e de planejamento de recursos hídricos não estão integradas ao [setor de] licenciamento, onde está o núcleo de outorga, algo absurdo”, afirmou um desses servidores.
Para estas fontes, faltam também diretrizes consolidadas sobre como lidar com licenciamentos que impactam povos tradicionais. Elas citaram a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil , que obriga a consulta prévia a povos originários antes da liberação de empreendimentos que impactem seus modos de vida e territórios.
“Os técnicos fazem das tripas coração para que comunidades [tradicionais] sejam ouvidas, mas esses servidores não são bem vistos [internamente], são chamados de ‘ambientalistas’”, afirma uma das fontes.
A impressão de um “libera geral” não se restringe às águas, segundo dados e relatos colhidos pela reportagem. O Inema autoriza vastos desmatamentos de Cerrado nativo no estado, prática comum do agronegócio no oeste baiano.
Desde 2012, a diretoria do órgão estadual autorizou a derrubada de mais de 7,5 mil km2 (750 mil hectares) em toda a Bahia, o equivalente a mais de dez vezes a área da capital Salvador. Os dados provêm de uma análise das autorizações de desmatamento publicadas no Diário Oficial da Bahia, obtida pela Pública.
“Este modelo de agronegócios [de commodities] se concentra na mão de poucos e impacta o modo de vida das comunidades, seja por conta da redução da biodiversidade, do comprometimento da recarga do [aquífero] Urucuia , do assoreamento de rios e por aí vai”, diz Samuel Chagas, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A Pública tentou contato com Márcia Telles, para ouvi-la sobre as críticas às autorizações para desmatamento e uso de água na Bahia. A secretária de Meio Ambiente e ex-diretora do Inema não retornou os contatos até a publicação desta reportagem. O governo baiano também não respondeu aos questionamentos enviados.
Fonte
O post “Quem é a servidora por trás do ‘libera geral’ de águas na Bahia” foi publicado em 9th December 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública