Semana passada encerrou a série de dez episódios Impeachment. É a terceira temporada de American Crime Story (a primeira foi sobre o julgamento de O. J. Simpson; a segunda, sobre o assassinato de Versace, ambas excelentes). Eu vi e vou contar pra vocês.
Pra quem viveu os anos 1990, Impeachment (trailer ) é bem interessante. Difícil acreditar que mesmo quem não era nascido naquela década possa não ter ouvido falar de Monica Lewinsky, uma estagiária da Casa Branca que teve um caso com o então presidente Bill Clinton. Foi um escândalo internacional. Monica era uma moça ingênua e bobinha de 21 anos de classe média alta que realmente se apaixonou pelo cara mais poderoso do mundo. E confiou numa amiga, Linda Tripp, também servidora pública, que a traiu — gravou horas de telefonemas com ela e entregou tudo ao ex-juiz Ken Starr, obcecado em perseguir Bill e Hillary Clinton.
Bill estava sendo processado por assédio sexual por Paula Jones, dos tempos em que ele ainda era governador de Arkansas. Ao ser chamado pra depor sobre esse caso, foi questionado sobre seu relacionamento com Monica. Arrogante e crente na impunidade, mentiu descaradamente. Se ele apenas tivesse admitido que sim, teve um caso com ela, nada teria acontecido (era 1998, quase vinte anos antes do MeToo, e termos como “assédio” ainda eram novos). Mas ele mentiu sob julgamento, cometendo perjúrio. Foi impeached na Câmara e absolvido no Senado. Não conseguiu eleger seu sucessor e marcou para sempre a carreira de Hillary.
Embora Hillary mal apareça antes do episódio 7, a série — que raramente mostra beijos e muito menos sexo oral entre o presidente e a estagiária (mostra um relacionamento consensual, troca de presentes e telefonemas) — é muito mais sobre “as mulheres de Clinton” (como Juanita Broaddrick, uma senhora que acusou Bill de estupro em 1978, é chamada) que sobre o presidente, muito mais sobre os bastidores do que sobre o processo que por pouco não destituiu um líder.
Sim, é verdade que a série usa a palavra “impeachment” menos que a palavra “charuto” (Monica, coitada, teve que contar em detalhes pro time de Ken Starr como Clinton uma vez colocou um charuto na sua vagina).
Mas esse era bem o clima da época. E a gente que estava lá lembra de como a internet era pré-histórica em 1998. Os sites levavam horas pra carregar e caíam facilmente. É o tipo de coisa que a gente adora ver. Tem até close de alguém colocando um disquete na torre!
Uma das pouquíssimas qualidades de Bill Clinton (interpretado por um Clive Owen bastante convincente ) é que, assim que ele é impeached, decide contar uma piada amarga a seus assessores (todos homens brancos). Ninguém ri. Alguém na série fala de seu “magnetismo animal” ao vivo, mas isso definitivamente não aparece. Ele é só um predador sexual e um menino mimado ao mesmo tempo, incapaz de autocrítica. Sua única preocupação aparentemente é ser abandonado por Hillary.
O melhor dos dez episódios é sem dúvida o sexto, que mostra as angustiantes doze horas em que Monica é detida pelo FBI e os promotores de Starr num hotel num shopping.
Poucos ainda sabem da sua existência, e eles oferecem imunidade e a garantia de que Monica não será processada (a alternativa, segundo eles, é pegar 28 anos de cadeia) se ela gravar Bill se comprometendo. Mesmo arrasada, pensando seriamente em suicídio, ela se recusa.
A melhor cena desse episódio é esta , catártica. Monica finalmente fala com seu pai por telefone, na frente de todos os agentes do FBI (só tem homem). Ela já está lá, sendo enganada e ameaçada, há onze horas. Sua mãe finalmente chegou, e os caras quase a enganam a fazer Monica contar tudo e armar pro Clinton, até que a mãe cobra um documento por escrito. E como tudo que eles estão fazendo é ilegal, não podem redigir o contrato.
Em seguida, temos a maior propaganda que eu vejo de advogados em muito tempo. O advogado de família de Monica conversa afetuosamente com ela por telefone, e pede pra falar com o promotor. Dispara um monte de palavrões, e cobra que essa oferta de imunidade para Monica seja colocada num papel assinado. E o promotor enrola, diz que não tem máquina de escrever, que não tem fax (1998, sabe como é), e o advogado responde: “Sabe, eu conheço esse hotel. Já fiquei nesse hotel. Eles têm fax. É uma droga de Ritz-Carlton! Você é um pedaço de m*rda mentiroso! A verdade é que vocês não têm o poder de colocar nenhuma palavra no papel, não é?”
Mas pobre Monica. Sempre tive pena dela. Obviamente ela nunca quis nada daquilo. A Monica de verdade (que é muito mais bonita que Beanie Feldstein, que está ótima) sentiu-se mal ao ver que tinha se tornado uma celebridade com montes de fãs. Na sua noite de autógrafos em Londres, isso fica muito evidente . Quando seu nome se torna conhecido mundialmente, ela é descrita como uma stalker! Ela, uma jovem no seu primeiro emprego, é pintada como uma carente que foi atrás do homem mais poderoso do mundo, tadinho! Fico feliz que ela conseguiu dar a volta por cima, defendeu o movimento MeToo, se tornou uma porta-voz contra bullying e até uma produtora de uma série que também é sobre ela (ela é uma das produtoras de Impeachment).
Monica é tão graciosa que, apesar de ter dito “Eu odeio Linda Tripp” numa audiência, quando Monica ficou sabendo que Linda estava com câncer, duas décadas depois, desejou-lhe melhoras (a foto ao lado é de Monica hoje).
Mas quem rouba todas as cenas é a genial Sarah Paulson como Linda Tripp, que durante os anos 90 virou uma das pessoas mais odiadas dos EUA (ninguém a perdoou por trair uma amiga). Paulson se submeteu à maquiagem e aplicações prostéticas por três horas antes de encarnar Linda. Engordou 15 quilos, usou “fat suit”, estudou com um treinador de movimento. Ficou irreconhecível. Eu passei os dois primeiros episódios procurando a Sarah Paulson!
Não fui a única que adorou o trabalho de Paulson. A filha de Linda na vida real, Allison, também adorou . Para ela, a representação de Paulson é cheia de empatia, e ela espera que a série traga alguma paz a Monica. Allison hoje trabalha como agente imobiliária, o mesmo emprego atual de Paula Jones. No começo da série, Linda não parece ter qualquer tipo de amizade com a Allison adolescente — ela tem um relacionamento muito mais próximo com Monica. Mas, à medida que a série avança, Allison acaba sendo a única amiga de sua mãe.
E lógico que a Allison da vida real é grata pela série representar Linda fisicamente de uma forma muito melhor do que ela era apresentada na época (por exemplo, John Goodman a interpretava no Saturday Night Live). Para Allison, Paulson está formidável: “Eu quase senti que minha mãe estava aqui. É estranho e surreal”. Ela quer abraçar a atriz, e chora. “Ela ajudou a suavizar a imagem da minha mãe e permitiu que as pessoas tivessem outro ponto de vista do que realmente aconteceu”.
O motivo de Linda para fazer tudo o que ela fez (tirando as desculpas furadas de amor pelo seu país e as teorias conspiratórias de que o casal Clinton queria matá-la) é oferecido no último episódio, quando ela revela pra filha que o pai dela era um mentiroso e trapaceiro, com montes de casos extraconjugais antes de abandonar a família, e ainda assim todo mundo gostava dele. “Homens como Bill Clinton — eles arruínam vidas, e eles se safam”.
Outra que rouba as cenas em que aparece é Cobie Smulders, que faz a jornalista de extrema-direita Ann Coulter. Coulter, uma pessoa hedionda na vida real (ela é contra mulheres poderem votar e já disse que só é estupro quando uma mulher recebe uma pancada de tijolo na cabeça), até que se sai bem na série. Seus comentários ridículos tornam-se divertidos. Pra expor seu desapontamento sobre Paula Jones ter posado nua pra Penthouse, ela diz, sem noção: “Ela era a nossa Rosa Parks”.
Porém, o diálogo mais engraçado da série é quando Linda Tripp conta pra editora que pode ser processada por gravar os telefonemas de Monica, já que em Maryland, onde Linda vive, isso é crime. “Não é todo mundo que vive em Nova York”, reclama Linda, ao que a editora responde: “Sim, eu nunca entendi isso”.
No último episódio, a série intercala Hillary Clinton (Edie Falco) sendo convidada para concorrer ao Senado e posar para a Vogue com Paula posando pra Penthouse por dinheiro, quase chorando (a série não conta que, duas vezes antes, em anos anteriores, a revista pornô publicou fotos nuas não autorizadas de Paula). A verdadeira Paula Jones, que apoiou Trump em 2016, não gostou da série. Ela acha que a atriz que a interpreta, Annaleigh Ashford, acertou no visual, mas que há muita coisa equivocada sobre ela. Eu, que não sabia quase nada sobre sua vida, fiquei com a imagem de uma mulher sem malícia ou poder algum (e com um marido detestável) que foi totalmente manipulada pela direita.
Ao contrário de tantas séries (e filmes) baseadas em fatos reais, Impeachment não coloca legendas no final (talvez tenha sido melhor assim: logo no início da season finale, a palavra “September”, em letras garrafais, surge grafada errado) explicando, por exemplo, que Linda Tripp morreu de câncer ano passado, aos 70 anos (antes tendo se casado novamente e aberto uma loja de decoração natalina), ou que todos aqueles conservadores que fingiram ficar ultrajados com os escândalos de Bill Clinton apoiaram em 2016 (e continuam apoiando) um predador sexual ainda pior. O espectador tem que procurar essas informações por conta própria.
Mas vale a pena. Com uma história dessas, de mulheres brigando umas com as outras, não tem como a série ser feminista, mas ela expõe o machismo dos anos 90, em que uma estagiária que faz sexo oral no presidente, a amiga que a delata, uma esposa traída, uma mulher que acusa um homem de assédio, são todas julgadas com rigor maior que um presidente assediador. Como diz a roteirista Sarah Burgess, a série é sobre mulheres sem poder. Não é uma vida fácil.
O post “AMERICAN CRIME STORY: IMPEACHMENT, UMA SÉRIE SOBRE MULHERES SEM PODER” foi publicado em 16th November 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva