Reproduzo aqui este excelente artigo que Simony dos Anjos publicou na Carta Capital. Simony é quem basicamente me apresentou ao feminismo cristão. Tenho enorme admiração por ela, que é evangélica, cientista social, mestra em educação e doutoranda em economia. É da Rede de Mulheres Negras Evangélicas e articuladora da Coalizão Evangélica contra Bolsonaro. Foi candidata à prefeita de Osasco pelo Psol no ano passado.
Recentemente, o pastor brasiliense Anderson Silva escreveu nas redes sociais que a mulher tem um ‘potencial demoníaco’. Segundo ele, a sociedade olha apenas para a agressão que um homem comete contra uma mulher, mas não para os meses de tortura psicológica ao quais a mulher supostamente submeteria o homem.
Ora, esse discurso é criminoso e o autor deve ser responsabilizado na justiça. Culpabilizar mulheres por sofrerem a violência reforça a ideia de que elas merecem apanhar e encoraja os homens a cometer abusos contra suas companheiras, sejam elas psicológicos, financeiros, sexuais ou físicos.
Silva, que tem centenas de milhares de seguidores nas redes sociais, é idealizador de projeto chamado Machonaria, que busca resgatar os valores patriarcais na sociedade. Esse tipo de postagem não é raridade. Tenho visto dezenas de perfis que discursam sobre uma masculinidade violenta, que submete mulheres à vontade de homens a custo da integridade emocional e física de suas esposas. Esses perfis falam que mulheres são obrigadas a fazer sexo com seus maridos, mesmo sem vontade; que o fato de querer ter filhos é uma decisão do casal e não da mulher – a partir da ideia de que, para por DIU ou usar anticoncepcionais a mulher deve ter, primeiro, a permissão do marido; de que o dever da mulher é cuidar dos filhos e do marido e que mulheres são frágeis e devem ser protegidas por homens, dentre outros absurdos.
Não entendo como as redes sociais, como Facebook e Instagram, permitem que eles publiquem esses discursos diariamente e que nós, as feministas, tenhamos que rastrear uma a uma dessas postagens e denunciá-las para que saiam do ar.
Observando os comentários, li, infelizmente, uma mulher agredida pelo marido dizer que sabia porque tinha apanhado, e que merecia isso. Outros tantos apoiam a ideia de que mulheres que não seguem o que se espera delas devem ser penalizadas com violência. Em segundos, esses perfis põe em xeque o esforço de décadas em defesa dos direitos das mulheres comandarem suas vidas, de viverem em relacionamentos saudáveis e respeitosos. Esforços que com grande articulação nacional culminaram na Lei Maria da Penha são enfraquecidos e combatidos por homens que pregam desonestamente uma ideia de família que apenas favorece a eles.
Não preciso dizer que esses perfis têm forte apelo religioso, baseados na tríade família-tradição-propriedade (sem esquecer da defesa de posse de armas).
Quando vejo um machista que prega a submissão da mulher e a posse de armas, me arrepio. Contra quem essas armas serão usadas, senão contra as próprias mulheres? A quem interessa que mulheres vivam para os homens, anulando seus desejos e vontades? A quem interessa usar a religião para pregar tanta violência contra a mulher?
Sou evangélica de berço, amo minha comunidade, irmãs e irmãos, e me sinto bem entre eles e elas. Vivo diariamente essa realidade que muitas pessoas apenas veem de fora. A igreja é um espaço onde se ama, onde se acolhe, onde eu tenho amigos muito queridos. Mas a igreja pode ser também um espaço que silencia e que se acostuma com a violência.
Sabem por que me “tornei feminista”? Eu tinha 15 anos quando percebi que uma irmã da igreja apanhava. Ela faltava a muitas reuniões, até as marcas sumirem do rosto e do corpo. Aos 15 anos, soube que uma comunidade inteira aceitava que uma mulher apanhasse, e achava que isso não era da conta de ninguém. Afinal, em briga de marido e mulher…
Isso ainda acontece em milhares de igrejas espalhadas pelo Brasil. Sustentados pelo machismo, homens reafirmam diariamente em púlpitos que mulheres devem ser submissas, mesmo que isso custe suas vidas. Nas redes sociais — com uma tatuagem aqui, um coque samurai ali e uma prancha de surf acolá — esses discursos alcançam milhões de pessoas.
Se uma mulher publica a imagem de um parto ou de um seio descoberto amamentando, imediatamente as redes derrubam a postagem. Mas quando um machista escreve que mulheres devem sexo ao marido, é necessário a denúncia para que essa postagem saia do ar. Por isso falamos de um machismo estrutural, que rege os algoritmos e estrutura a religião e a economia.
O perfil do machonarista tem 117 mil seguidores, ou seja, é um perfil lucrativo para as redes. Movimenta dinheiro, movimenta público. A pergunta que faço é: a custa de quem? De nós, mulheres? Ainda mais nós, mulheres negras, que somos submetidas à violência doméstica dupla: dos maridos e dos patrões.
O pensamento colonial que se sustenta na ideia de que o homem branco é um sujeito de todos os direitos, enquanto as demais pessoas são propriedades é regurgitado o tempo todo nesses perfis – a lógica do bandido bom é bandido morto, a ideia de que mulheres são objetos e tantas outras ideias que reforçam os privilégios de raça, gênero e classe.
Sim, esses perfis são de homens brancos, que defendem o capitalismo e as armas. Toda a lógica colonial brasileira sendo reiterada bem embaixo do nariz dos donos dessas mídias sociais. Penso eu, essas plataformas não devem ser responsabilizadas? Podem livremente veicular discurso de violência e ódio contra as mulheres, sem regulação alguma? A naturalização da submissão das mulheres se dilui em meio à dancinhas, likes e bichinhos fofos.
Entretanto, prestem bem atenção: nós feministas expulsaremos o demônio do machismo do Brasil. É pela vida de todas as mulheres que estamos nas trincheiras contra a lógica patriarcal que faz com que o Brasil seja o quinto país do mundo a matar mulheres cis e o primeiro a matar mulheres trans. Basta de violência contra as mulheres, seja nos púlpitos, seja nas mídias sociais. Não permitiremos mais.