Antes de mais nada, precisamos deixar claro para os leitores que esse texto não tem o objetivo de ser contra a expansão da geração de energias renováveis no Brasil, muito pelo contrário. Especialmente em um contexto de crise energética, causada por fatores ambientais e políticos, a expansão desse tipo de matriz energética é muito bem-vinda. No entanto, vivemos uma crise ainda maior, a crise climática, causada em grande parte pela forma equivocada como exploramos os recursos naturais e ocupamos as áreas de vegetação nativa, gerando maiores índices de poluição, incêndios florestais, desertificação e secas, que inclusive resulta na baixa dos reservatórios das usinas hidrelétricas, sentida diretamente no bolso do consumidor. Justamente por isso propomos aqui um debate sobre o melhor caminho para que a expansão do uso das fontes de energias renováveis aconteça de forma realmente sustentável, respeitando os ecossistemas, a biodiversidade e as comunidades locais, pois acreditamos que esse caminho é possível, necessário e urgente!
Eólicas e impactos sobre a biodiversidade
A crescente demanda por energia elétrica é uma realidade em todo mundo, seja para o consumo doméstico ou industrial. Por isso, encontrar alternativas aos combustíveis fósseis e usinas termelétricas é urgente, já que essas são mais poluentes e caras. Além disso, o sistema hidrelétrico é susceptível às flutuações das chuvas e volumes dos grandes lagos, que podem ser dramaticamente reduzidos em um cenário de mudanças climáticas, como está ocorrendo neste momento no Brasil. Por tudo isso, as energias renováveis são bem-vindas. No entanto, é preciso garantir que o avanço na geração de energia de fontes renováveis caminhe lado a lado com a sustentabilidade dos empreendimentos e com a conservação da biodiversidade e geodiversidade, bem como com a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Isso é especialmente importante em um ecossistema de elevada diversidade biológica, baixa cobertura de unidades de conservação, considerável vulnerabilidade socioeconômica e alta susceptibilidade às mudanças climáticas, como é o caso da Caatinga.
Apesar de serem colocados como uma energia limpa em comparação com as outras matrizes energéticas, parques eólicos causam impactos socioambientais negativos importantes. O processo produtivo dos aerogeradores, a instalação dos parques eólicos e o descarte de materiais obsoletos ainda merecem grande atenção e quase nunca são considerados quando pensamos nos danos causados por esse tipo de geração de energia. No entanto, o foco desse texto é o impacto sobre a biodiversidade, diretamente sobre a fauna alada e indiretamente aos outros grupos de animais terrestres e plantas. Animais voadores como aves e morcegos podem colidir com os aerogeradores, e morcegos morrem ainda por barotrauma, causado pela mudança repentina na pressão do ar durante o movimento circular das hélices dos aerogeradores. Além disso, impactos como a perda, degradação e fragmentação dos habitats e o aumento de atropelamentos de fauna terrestre são uma realidade, especialmente em áreas mais conservadas, já que são abertos largos acessos para os parques e as linhas de transmissão de energia, que facilitam ainda o acesso de caçadores e outras atividades exploratórias ilegais. De fato, um estudo recente apontou que aproximadamente 62% dos parques eólicos do Brasil foram instalados em áreas originalmente cobertas por vegetação nativa ou dunas costeiras, sugerindo assim que áreas já degradadas não são priorizadas, e isso é mais preocupante em estados do Nordeste como Ceará e Rio Grande do Norte. Adicionalmente, considerando que estamos em uma região semiárida, há de se considerar de forma muito rigorosa os impactos dos empreendimentos sobre os recursos hídricos, uma vez que a demanda por água é enorme durante a instalação dos empreendimentos e esse recurso é cada vez mais escasso em um cenário de mudanças climáticas.
Áreas Prioritárias para Conservação
Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade representam um importante instrumento da política pública ambiental brasileira. Instituídas pelo Decreto nº 5092, de 21 de maio de 2004, em 2016 as Áreas Prioritárias foram atualizadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e identificadas por meio de Planejamento Sistemático da Conservação, com a participação de técnicos e especialistas de instituições de ensino e pesquisa e organizações não governamentais. A definição e o mapeamento dessas áreas fornece subsídios para a tomada de decisão no planejamento e implementação de ações que ajudam o país a cumprir as metas ambientais assumidas pelo Brasil em diferentes tratados internacionais (Convenção da Diversidade Biológica, por exemplo) desde a reunião Rio 92, entre elas a de conservar uma porção significativa de todos os seus biomas através da criação de unidades de conservação (UC), promover ações de recuperação de ambientes degradados e de espécies ameaçadas de extinção.
Para a Caatinga, a última atualização, publicada através da Portaria MMA nº 223 de 21 de junho de 2016 e atualizada pela Portaria 463 de 18 de dezembro de 2018 , indicou 277 Áreas Prioritárias neste bioma, que cobre a maior parte do Nordeste do Brasil e que está entre os mais degradados e desprotegidos do país. A Caatinga já perdeu aproximadamente 50% da sua cobertura original e pouco mais de 7% do seu território é protegido por unidades de conservação, sendo menos de 2% dele coberto por UC de proteção integral, que é a categoria que garante maior proteção.
No Rio Grande do Norte (RN), estado que tem mais 90% do território coberto pela Caatinga, foram identificadas 45 áreas prioritárias e a presença de 133 alvos de conservação, entre espécies de animais e vegetais, cavernas e elementos da geodiversidade, somando 1.565.975 hectares e 41,6% da área de Caatinga do território potiguar. A indicação dessas áreas teve grande contribuição de uma iniciativa liderada pelo Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pela Organização Não Governamental WCS Brasil (Wildlife Conservation Society, na sigla em inglês), com participação do órgão ambiental estadual, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA). Entre 2013 e 2016, o Projeto Caatinga Potiguar atuou para identificar e caracterizar a sociobiodiversidade das áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do estado, com o intuito de subsidiar a criação de novas unidades de conservação no bioma, dada a sua baixa representatividade a nível de Caatinga e de estado.
Eólicas em Áreas Prioritárias do Rio Grande do Norte
Nos últimos anos, contudo, apesar dos esforços realizados por várias instituições e das informações publicadas, comprovando a relevância ambiental das Áreas Prioritárias para a Conservação da Caatinga no estado, pouca ou nenhuma ação concreta de preservação dessas áreas, como a criação de unidades de conservação por parte dos governos federal, estadual ou municipais, foi colocada em prática. Sem sua proteção reforçada, as regiões das serras potiguares estão no centro da zona de expansão dos parques e complexos eólicos no estado. Os empreendimentos migram das regiões mais próximas do litoral potiguar, onde existem extensos adensamentos de aerogeradores, como nos municípios de João Câmara e Parazinho, para o interior do estado, onde se encontram algumas das áreas naturais mais relevantes do Rio Grande do Norte, já que o terreno acidentado das serras faz com que esses ambientes sejam historicamente menos ocupados
A expansão desses empreendimentos em Áreas Prioritárias para a Conservação da Caatinga é uma realidade que tem deixado pesquisadores e especialistas temerosos sobre o futuro da biodiversidade do Rio Grande do Norte. Nos últimos anos, parques eólicos vêm sendo instalados em extensas áreas de vegetação nativa nos municípios de Lagoa Nova, Cerro Corá, Caiçara do Rio do Ventos, São Tomé e Lajes, incluindo boa parte de Áreas Prioritárias para a Conservação da Caatinga reconhecidas pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil. Apesar da grande relevância ambiental destas áreas, durante o processo de instalação de alguns destes parques, nem mesmo audiências públicas foram realizadas para discutir a viabilidade e localização desses empreendimentos, já que o licenciamento foi realizado de forma simplificada, através de Relatórios Ambientais Simplificados (RAS), proporcionado pelo desmembramento de um complexo eólico em vários parques, o que mascara o impacto total e geralmente desconsidera o impacto cumulativo. Nestes casos, não foram exigidos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e seus respectivos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA), documentos bem mais robustos e completos para se avaliar a viabilidade de um empreendimento e discutir as medidas preventivas e mitigadoras dos seus potenciais impactos ambientais.
Na última audiência pública realizada em 7 de julho de 2021 pelo IDEMA para apresentar o EIA/RIMA do Complexo Eólico Currais Novos, um grande empreendimento que deverá ocupar aproximadamente 1 mil hectares de caatinga relativamente preservada ao longo de quatro municípios no Rio Grande do Norte (São Tomé, Campo Redondo, Lajes Pintadas e Currais Novos) e um na Paraíba (Picuí), pesquisadores e moradores locais questionaram a qualidade e robustez dos dados biológicos apresentados pelo empreendedor, bem como os impactos socioambientais que uma obra desse porte poderia causar para as Áreas Prioritárias da Caatinga do estado e seus moradores. Só de acessos, para se ter uma ideia, o estudo apresentado prevê abertura ou uso de cerca de 140 km de estradas para interligar as 242 turbinas eólicas previstas, números que impressionam pela dimensão. Entre os especialistas que participaram da audiência, Carlos Roberto Fonseca, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande Norte, pontuou que estranhou a sobreposição do complexo eólico com duas áreas prioritárias para a conservação, dada a sua grande relevância. Entre estas áreas está a que cobre os municípios de Cerro Corá, São Tomé e Currais Novos. Segundo Carlos, falta no estado um exercício de zoneamento para delimitar onde poderão ser instalados empreendimentos e onde animais silvestres como morcegos e aves vão poder viver livremente. O RN precisa discutir a política de compensação destes empreendimentos para compatibilizar as eólicas com ações urgentes como a criação e manutenção de unidades de conservação, salientou Carlos.
Como parte da área do complexo eólico está na rota de deslocamento da única população de maracanãs-verdadeiras do Rio Grande do Norte, o professor da UFRN e ornitólogo Mauro Pichorim, que assina essa coluna, questionou se estudos realizados por seu grupo desde 2014 sobre esta espécie teriam sido levados em consideração na elaboração do EIA, já que nada foi citado na apresentação e nem no RIMA, único documento disponibilizado na ocasião. Mauro ainda se colocou à disposição para dialogar e procurar alternativas que viabilizassem a produção de energia com a conservação dessas aves, que segundo os estudos devem estar ameaçadas de extinção a nível estadual.
Outro ponto que chamou a atenção na apresentação do projeto do complexo eólico foi a omissão da presença de mamíferos ameaçados de extinção na área a ser impactada, desde pequenos felinos (Leopardus tigrinus e Herpailurus yagouaroundi) até o mocó (Kerodon rupestris), espécies confirmadas na área em diferentes estudos publicados a partir de 2015. A empresa justificou que essas espécies não foram registradas diretamente na área do levantamento dos dados, mas que estariam citadas em uma lista secundária de espécies no EIA, o qual não foi disponibilizado antes e nem durante a audiência pública. Estudos demonstram que essas espécies não são de difícil detecção na região, quando o método de coleta de dados é adequado e, portanto, a ausência de seus registros reforça que o esforço amostral empregado foi insuficiente para caracterizar de forma adequada a biodiversidade a ser impactada pelo empreendimento, o que foi corroborado pelos questionamentos de diferentes pesquisadores e até mesmo de moradores locais que conhecem a fauna da região e participaram da audiência.
O questionamento sobre a dimensão da ocupação de Áreas de Preservação Permanente (APP) nos topos e encostas das serras também ficou sem a devida resposta, pontua Marcos Nascimento, professor do Departamento de Geologia da UFRN. Além disso, não foi elucidada na audiência a quantidade e a fonte da água a ser utilizada nas terraplanagens e escavações da obra, mesmo considerando que se trata de uma região semiárida com recursos hídricos cada vez mais escassos. Todos estes pontos vão ao encontro da rapidez com a Licença Prévia (LP) foi emitida pelo órgão licenciador, no último dia 5 de agosto. Essa LP foi emitida menos de um mês após a audiência pública, e mesmo após toda a discussão e críticas durante o evento e após ele via e-mails para o órgão ambiental, não foi solicitada nem mesmo uma complementação ao estudo e nem novas discussões com a sociedade, que foram fortes reinvindicações dos pesquisadores e moradores locais que participaram da audiência.
Área Prioritária mais relevante do Rio Grande do Norte
Entre as áreas indicadas como prioritárias no Rio Grande do Norte, a localizada na região que cobre os municípios de Lajes, Caiçara do Rio dos Ventos, São Tomé, Cerro Corá e Currais Novos possui alta prioridade de conservação e se destaca como uma das mais relevantes, inclusive considerando toda a Caatinga. Segundo publicação do MMA de 2016, essa região figura entre as 53 áreas de todo o bioma Caatinga onde ações proativas como a criação de unidades de conservação podem ser mais eficientes e menos onerosas, dada sua relevância biológica e a, até então, baixa taxa de perda de cobertura vegetal. A paisagem dessa região é formada por um mosaico de ambientes de vales e serras, entre as mais conhecidas estão a Serra do Feiticeiro, entre Lajes e Cerro Corá, e as serras de São João e da Arara, em Cerro Corá.
Estudos desenvolvidos nesta região sobre diferentes grupos de animais silvestres, desde 2014, corroboram esse cenário de alta relevância biológica. Já foram registradas pelo menos 16 espécies de mamíferos terrestres na região, sendo a maioria de médio e grande porte: veado-catingueiro, tamanduá-mirim, guaxinim, jaritataca, furão, raposa ou cachorro-do-mato, tatu-peba, tatu-galinha, gambá-de-orelha-branca, sagui-de-tufo-branco, preá, punaré, entre outros. São encontradas na região ainda duas espécies de gatos do mato ameaçados de extinção, o gato-do-mato-pintado (L. tigrinus) e o gato-mourisco (H. yagouaroundi), além de um roedor especializado em afloramentos rochosos também ameaçado, o mocó (K. rupestris). O gato-do-mato-pintado, por exemplo, é o felino brasileiro com o estado mais crítico de conservação atualmente, e estudos recentes indicam que a região de vegetação arbórea e densa entre Lajes, São Tomé e Cerro Corá se destaca como um dos refúgios mais importantes para a espécie. Além disso, essa região é um dos poucos locais do semiárido potiguar onde ocorre também a jaguatirica (Leopardus pardalis), e relatos de onça-parda (Puma concolor) sugerem que esse predador de topo de cadeia que está quase extinto no Rio Grande do Norte ainda pode circular pelas serras da região, reforçando sua relevância como refúgio para espécies raras, ameaçadas e ecologicamente relevantes. Os felinos registrados na região são espécies alvos de estratégias nacionais de conservação da biodiversidade, os Planos de Ação Nacional para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção coordenados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO).
Nessa Área Prioritária também ocorrem pelo menos 22 espécies de morcegos, incluindo duas espécies endêmicas da Caatinga (Lonchophylla inexpectata e Xeronycteris vieirai) e espécies ameaçada de extinção, como X. vieirai e Furipterus horrens. Além disso, a área abriga uma alta riqueza de morcegos beija-flor, aqueles que se alimentam de pólen e néctar das plantas, com registros de cinco espécies diferentes, uma das mais altas riquezas de morcegos beija-flor para Caatinga. Essa alta riqueza possivelmente se deve a uma forte associação destes morcegos a áreas dominadas principalmente por cactáceas. Espécies como a macambira-de-flecha (Encholirium spectabile), e as cactáceas como o xique-xique (Xiquexique gounellei), o facheiro (Pilosocereus pachycladus) e o mandacaru (Cereus jamacaru), dependem dos morcegos beija-flores para sua polinização, já que se alimentam do néctar das flores que abrem apenas à noite. Portanto, esses morcegos têm um papel fundamental na manutenção das populações dessas plantas que, no período de estiagem severa, são utilizadas como forrageira, suprindo parte das necessidades nutricionais e de água de diferentes animais de criação, além de serem plantas ícone do sertão e do folclore nordestino. Ainda mais, a área abriga em uma das suas centenas de cavernas a única colônia do morcego beija-flor-da-Caatinga (X. vieirai) conhecida no Rio Grande do Norte, e das poucas registradas no Brasil. Toda essa relevância para os morcegos, levou a área da Serra do Feiticeiro a ser reconhecida em 2019 como uma Área Importante para a Conservação de Morcegos (AICOM) pela Rede Latino-Americana e Caribenha para a Conservação de Morcegos (RELCOM). No Brasil, são estabelecidas até o momento apenas seis AICOMs, dentre essas está a Serra do Feiticeiro. No entanto, outras áreas adjacentes à Serra do Feiticeiro ainda não foram estudadas, e por enquanto a sua fauna de morcegos ainda é desconhecida.
Para as aves – outro grupo de grande importância para o equilíbrio dos ecossistemas – são catalogadas para a região pelo menos 189 espécies. Dentre essas, merecem destaque espécies ameaçadas de extinção como o jacu-do-nordeste (Penelope jacucaca), o quase ameaçado papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), espécies endêmicas como o João chique-chique (Synallaxis hellmayri), a choca-do-nordeste (Sakesphorus cristatus), espécies emblemáticas como o urubu rei (Sarcoramphus papa ) e a única população conhecida de maracanã-verdadeira (Primolius maracana) no Rio Grande do Norte, com ocorrência em Cerro Corá e municípios adjacentes, especialmente nas serras de Santana, da Arara e do São João. Toda essa região está dentro de uma área estratégica do Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves da Caatinga, coordenado pelo ICMBIO.
É importante destacar que com a implantação do empreendimento virá a abertura de novas estradas e consequentemente isso vai provocar um aumento da caça, desmatamento e do tráfico, o que vai impactar negativamente as populações dessas espécies, principalmente no caso do jacu-do-nordeste, do papagaio-verdadeiro e da maracanã-verdadeira. Além disso, essas ameaças podem provocar extinções locais similares ao que já aconteceu com outras populações da maracanã-verdadeira ao longo da Serra de Santana. Tanto para as aves quanto para os mamíferos terrestres, as pesquisas realizadas na região têm demonstrado que as áreas de vegetação arbórea e densa associadas às serras, encostas e vales são a chave para toda essa biodiversidade. Nesse sentido, estabelecer espaços protegidos que incorporem esses ambientes é fundamental para garantir a conservação da rica avifauna e mastofauna dessa região.
A elevada beleza cênica da região, especialmente da Serra do Feiticeiro e da Serra da Arara, com suas formações rochosas e pinturas rupestres, atraem turistas e aventureiros em busca de trilhas ecológicas, observação de aves e contemplação da. Finalmente, mas não menos importante, essa região é onde estão as nascentes e boa parte das bacias hidrográficas de rios importantes para o estado, como o Rio Potengi, que dá nome ao Rio Grande do Norte.
Eólicas e Unidades de Conservação no Rio Grande do Norte
Para se ter uma ideia dos números do setor, segundo dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), o Nordeste foi responsável por 47 TWh (1 Terawatt-hora = 1 000 000 000 Quilowatt-hora [kWh]) da produção de energia por fontes eólicas no Brasil em 2020, representando quase 86% de toda a energia desse setor produzida no país. Desse montante, o Rio Grande do Norte (RN) foi responsável por 15,59 TWh (33%) de toda a energia gerada por fontes eólicas no Nordeste, a partir de 177 parques e 2.268 turbinas eólicas, ficando atrás apenas da Bahia, estado mais de 10 vezes maior que o RN. Esses dados mostram a relevância do Rio Grande do Norte em um setor em franca expansão, considerando que só em 2020 foram implantados 18 novos parques no RN, e que o estado ficou em primeiro lugar no último leilão de compra de energia realizado no dia 08 de julho deste ano.
Essa liderança do Rio Grande do Norte na implantação de energias renováveis, no entanto, não é acompanhada de avanços nas políticas ambientais estaduais que poderiam garantir a compatibilização dos empreendimentos com a conservação de ecossistemas biodiversos, sensíveis e pouco conhecidos e protegidos, como são as encostas e topos das serras do RN. De fato, os dados de licenciamento de parques eólicos e de criação de áreas protegidas publicados no último anuário do estado mostram que a criação de unidades de conservação estaduais está defasada e não acompanhou nem de perto o crescimento exponencial dos parques eólicos no estado a partir de 2010 (ver gráfico). De lá para cá apenas uma nova unidade de conservação foi criada, a Área de Proteção Ambiental Dunas do Rosado, da categoria de uso sustentável, e assim, menos restritiva. Esse cenário se torna ainda mais crítico quando são consideradas unidades de conservação estaduais de proteção integral, que são mais efetivas, mas representam uma porção muito pequena da área total protegida do RN. Além disso, elas estão concentradas apenas na Mata Atlântica do estado. Por outro lado, atualmente não existe nenhuma unidade de conservação que protege os ecossistemas das serras potiguares, ambientes únicos e cobertos em grande parte por Áreas de Preservação Permanente (APP), mas que estão pouco a pouco sendo descaracterizados e dando lugar a largos acessos e bases de aerogeradores.
Em uma pesquisa de 2017 realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre os estados do Nordeste, o Rio Grande do Norte aparecia na última posição como o estado que menos protege a sua Caatinga, que cobre 94% do estado. É importante destacar que, de acordo com dados atualizados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação – CNUC/MMA, o Rio Grande do Norte possui cerca de 108.510 hectares de áreas protegidas em UCs federais, estaduais, municipais e áreas particulares, o que corresponde a apenas 2% de seu território, e apenas 1% das florestas do estado estão em áreas protegidas.
Compatibilizando eólicas e a conservação da biodiversidade potiguar
Não sabemos o impacto que a instalação de extensos campos com torres de geração de energia eólica tem especificamente sobre a fauna da Caatinga, e como este impacto pode estar afetando os serviços ecossistêmicos realizados por estes grupos, como por exemplo a polinização, controle de populações de insetos pragas, dispersão de sementes, etc. Estes impactos deveriam estar sendo medidos de forma criteriosa nas avaliações de impacto realizadas para se obter a licença para a implantação das obras. No entanto, ano após ano, temos nos deparado com avaliações de baixa qualidade técnica, com coleta de dados insuficientes e sem nenhuma proposta de programas de monitoramento com algum embasamento na teoria ecológica. Na verdade, é comum estes estudos em relação à fauna, se limitarem a apresentação de uma lista (em geral incompleta e insuficiente) que, dado o baixo esforço de coleta, jamais passaria pelo crivo científico para serem publicadas em uma revista científica.
Ora, se os dados são coletados com o uso de metodologias frágeis e inapropriadas para serem aceitas no meio acadêmico, como podem ser aceitas na instalação de empreendimentos que poderão, em última instância, levar ao desaparecimento de populações inteiras? Aqui vemos uma clara divisão entre dois mundos. O primeiro é o acadêmico, onde o método, o protocolo, a amostragem e os resultados são tratados de forma rigorosa e clara, buscando responder de maneira adequada às perguntas feitas. No mundo acadêmico, todo o processo de geração da informação é submetido ao crivo de outros especialistas que podem considerar aquele trabalho como válido ou não. Já no segundo mundo, do licenciamento ambiental da forma que está sendo feito, os estudos parecem ser feitos simplesmente com o objetivo de atender a exigências legais e obter a licença, mas nada têm a ver com uma preocupação real de compatibilizar a atividade econômica com a conservação ambiental. Ao passo que essa diferença de abordagens se configura como uma realidade, os estudos de licenciamento ambiental deveriam, pelo contrário, ser a arena onde o melhor do conhecimento científico deveria, obrigatoriamente, estar presente para podermos dar respostas que realmente possam ajudar na previsão e mitigação dos impactos. Afinal, é essa uma das principais contribuições da ciência para a humanidade, apontar formas de entendimento dos sistemas naturais e gerar previsões que ajudem nas tomadas de decisões. Infelizmente, os dados e análises apresentados pelos Estudos de Impacto Ambiental ou, pior, pelos Relatórios Ambientais Simplificados, em grande parte dos casos das eólicas, têm deixado muito a desejar em termos de sua qualidade e confiabilidade nas previsões dos impactos, o que pode ser estendido também à recente expansão dos parques fotovoltaicos.
Uma alternativa para compatibilizar a geração de energia por fontes eólicas com a conservação da rica e ameaçada biodiversidade das Áreas Prioritárias da Caatinga é destinar recursos da compensação ambiental prevista na avaliação de um EIA/RIMA para a criação e manutenção de áreas protegidas nas zonas impactadas pelos empreendimentos. Para isso, em muitos dos casos, é preciso deixar para trás a política de desmembramento dos complexos eólicos e a solicitação de estudos simplificados, considerando os empreendimentos na sua totalidade, bem como os impactos acumulativos de outras obras na sua vizinhança, reforçando assim o cenário de significativo impacto ambiental. Um trabalho científico publicado em 2017 por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco que avaliou a sobreposição destas áreas prioritárias com a expansão de empreendimentos eólicos já apontava para essa problemática, considerando que 47% das turbinas eólicas já instaladas estão em Áreas Prioritárias da Caatinga. Criar e implementar políticas efetivas de mitigação dos impactos e proteção de áreas tão relevantes é essencial e urgente visto que grande parte das serras que hoje mantêm a biodiversidade da Caatinga já possuem ou estão na rota de instalação de parques eólicos. Para isso é necessário maior rigor na avaliação dos empreendimentos e seus potenciais impactos, além de transparência e abertura para o diálogo entre empresas, órgão ambiental, especialistas e sociedade em geral, com a consequente implementação de mecanismos eficientes de compensação ambiental com destinação para criação e manutenção de unidades de conservação, idealmente em mosaicos que abriguem UCs de proteção integral e de uso sustentável.
A criação de áreas protegidas privadas como as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) pode ser prevista inclusive como uma condicionante facultativa, como já vem sendo feito em outros estados do país, quando o empreendedor reforça seu compromisso com a qualidade ambiental criando reservas particulares. No entanto, isso não retira dos estados a responsabilidade de criar e gerir unidades de conservação que garantam a proteção de porções significativas dos ecossistemas impactados pelos empreendimentos, tais como os ambientes de serras na Caatinga, especialmente no Rio Grande do Norte.
Existem casos, no entanto, onde a instalação de turbinas é inviável ambientalmente mesmo com uma política de mitigação e compensação, pois existem casos onde não é possível mitigar alguns impactos negativos, especialmente em situações onde espécies ou populações raras e ameaçadas de extinção podem ser extintas, e com elas perdermos sua história evolutiva e seus papeis ecológicos. Um exemplo disso é a situação da arara-azul-de-Lear (Anodorhynchus leari) no norte da Bahia, onde parques eólicos estão previstos para sua rota de deslocamento, o que recentemente ganhou a mídia e se assemelha ao que estamos vivendo com as únicas populações de maracanã-verdadeira e do morcego X. vieirai no Rio Grande do Norte, nas Serras da Arara e do Feiticeiro no Rio Grande do Norte, respectivamente.
Olhando para o futuro, o Rio Grande do Norte tem a oportunidade de se destacar também como um estado que, de fato, alia a produção de energias de fontes renováveis com a conservação da sua biodiversidade e paisagens naturais e com a justiça social, promovendo assim o almejado desenvolvimento sustentável. Isso é especialmente importante e urgente em um cenário de agravamento da desertificação na Caatinga devido ao avanço do desmatamento e das mudanças climáticas. Mas para isso, o estado precisará fazer o dever de casa, investindo no seu corpo técnico através de concurso público e em políticas públicas indispensáveis como um zoneamento ecológico econômico para todo o estado, até então ausente, e em mecanismos de compensação eficientes que garantam a proteção de habitats sensíveis e biologicamente relevantes através de ações como a criação de unidades de conservação, especialmente em áreas reconhecidamente insubstituíveis da Caatinga como as Serras do Feiticeiro e da Arara.
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