São milhares de quilômetros, que um dia foram florestas, derrubados pelo correntão ou que simplesmente pegaram fogo nas queimadas que afligem o Pará, o Acre, Amazonas, Roraima, o Mato Grosso. A monotonia das imensas plantações de soja desenrola-se diante do olhar incrédulo dos indígenas do Conselho Indígena Tupinambá Arapiuns (Cita) e do Conselho Indígena Tupinambá que, pela primeira vez, afastam-se tanto de suas aldeias.
Da janela do ônibus, observam, chocados, as centenas de caminhões transportando toneladas de grãos. À beira da estrada não há verde. As árvores que ainda resistem são só um detalhe na paisagem árida do Mato Grosso que dia escalda e à noite congela.
É esse o caminho que percorremos durante dias até Brasília, acompanhando a viagem dos indígenas para lutar contra os projetos de lei que ameaçam o seus territórios ancestrais e a natureza que neles viceja. O destino é o Acampamento Luta pela Vida, a base dos povos que chegam à capital do Brasil para tentar barrar artifícios legais que ameaçam sua sobrevivência, como o Marco Temporal, que será julgado hoje no STF.
Convocado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o acampamento foi montado perto da Praça dos Três Poderes, o centro político do país. É um caldeirão cultural que une etnias como os Borari, os Arara vermelha, os Arapium, os Munduruku Cara Preta, os Tapuia, Tupaiu, Xukuru, Xokleng, Ianomâmi, Guarani, Kayapó, Xavante, Pataxó, Krenak, vindas de todas as partes da Amazônia – de Roraima ao Pará.
O maior receio da organização é com a segurança dos indígenas. Grupos bolsonaristas invadem o acampamento a todo momento fotografando os indígenas sem pedir permissão, para depois encher suas redes sociais de imagens acompanhadas de fake news sobre a mobilização dos povos. Pela manhã, nos acordam com gritos de “Voltem pro mato, seus vagabundos!”. Mas os indígenas sabem que o confronto é uma armadilha para desqualificar sua resistência. Não vale a pena reagir.
São mais de 6.000 indígenas reunidos e a preocupação com a Covid-19 é real. Com tanta gente de fora circulando pelo acampamento, os indígenas se protegem. Além de recomendar o uso das máscaras, a COIAB montou uma barraca com profissionais de saúde que oferecem orientações e testagem. Se um parente está sem máscara sempre há quem tenha uma de sobressalente para doar e chamar a atenção para o descuido. Os indígenas sofreram muito com a pandemia, conhecem os riscos e têm consciência de que só contam consigo mesmo para se proteger em um governo hostil.
As lideranças estão presentes no acampamento. São ícones, não apenas de suas etnias, mas de um movimento inteiro como Marcos Xukuru, Alessandra Korap e Sônia Guajajara, eleita umas das pessoas mais influentes da América Latina em 2019.
Alessandra Korap sofre perseguições de garimpeiros em Jacareacanga, no Pará. Esse ano os garimpeiros, liderados pelos prefeito e vice-prefeito, ordenaram ataques à Polícia Federal, Ibama e às lideranças indígenas em suas casas e associações. Alessandra teve que se esconder para não sofrer violência. Marcos Xucuru, eleito legitimamente prefeito de Pesqueira, Pernambuco, não pode assumir o cargo.
Mas eles resistem. E não apenas por eles. Por todos nós, ou pelo que resta de humanidade nesse Brasil destruído pelo ódio, pela miséria, pela ambição desmedida e predatória que aquela praça, tão próxima do acampamento, simboliza.
Fonte
O post “Das aldeias ao mundo sem floresta: a caravana indígena a Brasília” foi publicado em 25th August 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública