Por: Nelsa Ines Fabian Nespolo
Diretora presidente da Cooperativa Univens, da Justa Trama, da Unisol-RS. Sócia fundadora do banco comunitário Justa Troca
A Economia em primeiro momento nos parece estática e pré-determinada, como se sempre tivesse tido as mesmas relações e processos. Somos uma geração que não teve uma disputa de modelo econômico-político, como aconteceu em outros países em outros momentos ou séculos da história. O sistema capitalista que é modelo ao qual vivemos é tão impregnado de ideologias e mecanismos que as vezes nos parece imutável. Essencialmente ele é concentrador na mão de poucos e já ou somente com este princípio, ele é contraditório ao bem-estar social, pois ele tem o princípio do bem-estar de poucos e quanto mais poucos mais controle da riqueza tem.
O último Estudo dos mais ricos do mundo é surpreendente, são de vários setores da economia. Nos perguntamos: são por estratégias, ou por herança, ou por outros elementos inerentes ao sistema capitalista como a corrupção? Os 20 mais ricos do mundo estão nos setores da Tecnologia, da auto indústria, moda e varejo, finanças e investimentos, bebidas e alimentos, telecomunicações, mídia e entretenimento.
RIQUEZA
O mais revoltante é que o número de bilionários cresceu em 2021: são 2.755 pessoas, 600 a mais do que em 2020, ou seja, durante a pandemia do coronavírus continuaram crescendo. Somadas, as fortunas de todos os bilionários atingem US$ 13,1 trilhões, valor bem acima dos US$ 8 trilhões da lista de 2020. Ainda segundo a Forbes, 86% dos bilionários estão mais ricos em 2021 do que em 2020
Pelo quarto ano consecutivo, Jeff Bezos, CEO da Amazon, é a pessoa mais rica do mundo, com fortuna estimada em US$ 177 bilhões mesmo com a crise causada pelo novo coronavírus. Americano no setor das tecnologias.
POBREZA
Durante o coronavírus em 2020 elevou os já 88 milhões para 115 milhões de pessoas à extrema pobreza no mundo, com o total de prejudicados pelo problema batendo em até 150 milhões até 2021, a depender da severidade da contradição econômica, diz o Banco Mundial.
Segundo a ONU até 2021, 150 milhões de pessoas devem cair para a extrema pobreza devido às economias de médio rendimento serão 82% dos novos pobres do mundo.
BRASIL
Trazer esses dados para o Brasil é muito revoltante, como por exemplo o brasileiro mais rico de 2021 é Jorge Paulo Lemann e família, com US$ 16,9 bilhões e o 114º lugar na lista global. Os 65 bilionários do Brasil detêm um quinto da riqueza econômica gerada no Brasil em um ano.
Enquanto isso, segundo a Fundação Getúlio Vargas, entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, temos 17,7 milhões de pessoas voltaram à pobreza. Em agosto, a população pobre era cerca de 9,5 milhões: ou seja 4,52% do total de brasileiros que compõem os 210 milhões. Em fevereiro, os dados de pobreza passaram para 27,2 milhões.
Em 2019, antes da pandemia, os dados consolidados apontavam para uma porcentagem de 10,97% dos brasileiros na extrema pobreza já em 2021 sobe para 12,8% os que estão nesta situação de extrema pobreza., ou seja, ganhando menos que R$ 246 por pessoa por mês ou seja menos de R$8,2 ao dia.
Alguém que seja humano consegue não ficar indignado com esses dados? Um humano consegue não se revoltar? Perguntamo-nos seria isso destino? Seria meritocracia? Seria isso inteligência? Astúcia? Oportunidades?
Vivemos em uma sociedade hipócrita, não só atualmente, mas durante a vigência do sistema que vivemos. Somos educados para admirar estes que enriqueceram e nos colocam isso como uma possibilidade para qualquer um, e que pobre é preguiçoso, não estuda, não se esforça, não aproveita as oportunidades e, além disso, é hereditária, ou seja, quem nasceu em berço esplendido continuará no berço esplêndido e quem nasceu na favela é lá que vai continuar. Os pais assim educam e se matam de trabalhar para que os filhos possam estar nas escolas e talvez na universidade e ainda quando conseguem é muito por mérito de esforço, como se com isso estivesse entrando em outra classe social.
O trabalho nos coloca cada um em uma categoria econômica. O sistema nos convenceu que quanto mais intelectual o trabalho mais valor econômico deve ter. E isso passa ao natural para todos, todos aceitam e se submetem a este conceito tão injusto quanto é injusta a sociedade. No fortalecimento da desigualdade econômica e social é profundamente necessário concentrar não só a riqueza monetária, mas também o conhecimento, o acesso a tecnologia, o exercício do saber e da busca do conhecimento sobre qualquer tema, qualquer assunto, qualquer tipo de trabalho e conceito.
Essa sociedade de poucos ricos são os mesmos que fazem chegar até os pobres a droga, a violência, a prostituição, a doença e a dor, tiram a utopia.
ECONOMIA SOLIDÁRIA
Desde o período da década de 90 construímos com força um outro conceito, nunca só o conceito, mas as práticas. Poderia perguntar por que Economia solidária, se a economia não tem solidariedade? Sim, a economia capitalista não tem, estamos falando de outra economia, feita por pessoas, por relações humanas, por valores e princípios que contrapõem essa economia capitalista. Na verdade, a economia em si só não tem ideologia, ela é induzida e imposta dentro de um modelo, de um sistema. Então podemos gerar outro conceito? Outra prática? E quem dera outro sistema? Outra economia?
Segundo um dos maiores idealizadores da economia solidaria Paul Singer:¨A economia solidaria no Brasil já constitui um movimento social expressivo, presente em todas as regiões deste nosso imenso e diversificado Brasil. Este crescimento se deve à contínua superação de obstáculos, entre os quais as dificuldades financeiras e comerciais se destacam, e a superação é graças a capacidade de nossos empreendimentos de se ajudar e apoiar mutuamente. Isso vem acontecendo há anos, mas em geral em escala local modesta, onde a proximidade dos agentes facilita contatos e o fortalecimento de laços de confiança mútua essenciais para o desenvolvimento das atividades econômicas e políticas que compõem a pauta nada simples da Economia solidaria.
É uma utopia real. Somos de uma diversidade incalculável vivenciando essa nova forma de vida e de viver. A Economia solidária se baseia no coletivo, um contraponto forte ao capitalismo onde tudo é individual e individualista. Na economia solidária temos o desafio de enfrentar o mundo, sobretudo o mundo do trabalho, não vendendo a mão de obra, o esforço físico ou intelectual, a vida. Não a venda. Vamos compartilhá-la e viver deste esforço coletivo e a riqueza que gerarmos fruto disto que seja compartilhada entre o coletivo.
Parece um sonho, um mundo sem ricos, sem pobres. Um mundo de iguais. No capitalismo, vendemos nossa vida. Ela é remunerada segundo que critérios? Segundo os teus anos de escola, do berço aonde viestes porque este berço determina teu comportamento e teus gestos de fineza. É realmente injusto a diferença de valor que é remunerada uma professora de escola primaria com uma professora universitária. Um pedreiro de um engenheiro. Se perguntarmos a uma criança de favela se gostaria de estudar, e um dia ter uma faculdade o que será que nos diria? E por que não o faz?
Como seria se a faxineira, o advogado e a dentista recebessem o mesmo valor pelas mesmas quantidades de horas trabalhadas? Então, a economia solidaria traz o conceito da vida. Todos deveriam receber o mesmo pelo tempo de vida que dedicamos para aquela função que é o conceito do trabalho. Este conceito que o trabalho é nossa contribuição para gerar riqueza e vivermos em sociedade, e o que fazemos para termos nossos direitos de alimentação, vestir, lazer, moradia, cultura… Neste conceito, não teríamos o bilionário Jeff Bezos que concentra riqueza porque concentra conhecimento e tecnologias,e porque usufrui da riqueza gerada pelos outros que são os explorados. E sempre que pensamos que não teríamos um bilionário também não teríamos centenas ou milhares de pessoas vivendo na pobreza ou miséria.
Segundo Marcio Pochmann do IPEA no prefacio do livro as Tramas da Esperança :A ousadia responsável exige dos progressistas além da capacidade de sobrepor as dificuldades tradicionais, a ciência do desenvolvimento de alternativas não mercantis para a produção e distribuição de riquezas em âmbito local, pelo menos. Ou seja, a estruturação de um agregado de formas organizacionais nas atividades econômicas assentadas pela divisão do trabalho cada vez mais excluídas da dinâmica do mercado capitalista.
A economia solidaria constrói este conceito de enfrentar este sistema tão desumano que vivemos, aliás só no Brasil somos mais de 2 milhões de brasileiros e brasileiras que escolheram outra forma de viver, de produzir e de compartilhar a riqueza gerada.
Organizados sempre em coletivos mais de 20 mil, de no mínimo 5 pessoas, muitos na informalidade, outros em associações, cooperativas ou empresas solidarias, mas nos setores bem diversos, seja desde o artesanato, vestuário, reciclagem, agricultura familiar, empresas recuperadas da indústria diversa, na construção civil, em cooperativas habitacionais, de profissionais como educadores, psicólogos, sociólogos e da saúde. Sem contar no campo das finanças com cooperativas de crédito e bancos comunitários.
Há um avanço construído nestes longos anos e tem fortalecido estratégias de enfrentamento das dificuldades, mas também de enfrentamento ao sistema, que é através de redes e cadeias. O que são as redes e cadeias na economia solidaria?
O que são redes?
É a união de vários segmentos que tem o mesmo fim, sem necessariamente envolver todas as etapas de uma cadeia de produção. As redes são fundamentais para chegarmos as cadeias. Algo nos identifica na Economia solidária, todos somos coletivos, em grupos, associações ou cooperativas. Para exemplificar podemos bem localizar aqui as redes de padarias no Paraná que se unem para a compra de insumos e ampliar a comercialização, as redes da confecção para atender demandas do mercada ou para comprar tecidos com valor mais competitivo, as redes de artesanato para comercializar juntas, assim seguem várias, que aproximam empreendimentos, os fortalece. As redes podem ser locais, ou em grandes territórios e até mesmo internacionais. As redes, geralmente, não têm o domínio de todo o processo ainda tem etapas que dependem do mercado capitalista.
O que são Cadeias?
Cadeia produtiva é um conjunto de etapas consecutivas, ao longo das quais os diversos insumos sofrem algum tipo de transformação, até a constituição de um produto final (bem ou serviço) e sua colocação no mercado. Na economia solidária, buscamos juntar os empreendimentos para todas as etapas de produção, assim podemos aproximar trabalhador do campo e da cidade, eliminamos o atravessador e, portanto, agregamos valor a cada etapa para uma justa distribuição de renda, e ainda podemos ter um cuidado especial com o meio ambiente.
Neste sentido é que podemos citar algumas, como a cadeia do algodão agroecológico: Justa Trama reconhecida pela FAO em 2016 como a melhor metodologia de enfrentamento a pobreza e miséria na América Latina: A experiência da Justa Trama segue essas orientações ao adotar um modelo de produção que valoriza os direitos, permite a distribuição equitativa dos benefícios entre os atores da rede e utiliza uma estratégia sustentável de agregação de valor pelo trabalho coletivo, com governança participativa e solidária. www.justatram.com.br
JUSTA TRAMA CONSTRUINDO ECONOMIA E VIDA
A Justa trama envolve mais de 500 trabalhadores(as) do Nordeste, Norte, Sudeste, Sul do Brasil, trabalhando em rede, ou seja, em cadeia produtiva. Todos organizados em cooperativas ou associações da Economia solidária. Portanto, o algodão é plantado no Ceará (em 5 cidades do sertão) e Mato Grosso do Sul (assentamento Itamarati, o maior do Brasil) de forma consorciada e ecológica; sem uso de agrotóxicos no plantio, toda a preservação é através de defensivos orgânicos, compostagens e com produtos naturais tipo o Nim, além dos plantios consorciados de multiculturas como o gergelim, milho, feijão… preservando o meio ambiente e a sustentabilidade dos agricultores. Esse processo de preservação e feito também na fiação, tecelagem em Minas Gerais até a confecção no Rio Grande do Sul mantendo os cuidados com o produto para que não se contamine com o convencional, também além de serem aproveitados todos os retalhos. As sementes da Amazônia em Rondônia que são adereços e botões beneficiados ecologicamente nesta tecnologia como não há intermediário todos ganham, ou seja, desde o agricultor até a costureira todos ganha quase o dobro do mercado convencional, portanto todos os que estão na cadeia fazem acontecer a distribuição de renda. O valor final de comercialização tem um valor agregado para garantir a sustentabilidade da cadeia. A Justa Trama é uma cooperativa de segundo grau formada por associações e cooperativas da economia solidária que realizam as várias etapas. Justa Trama também é a marca das roupas desde camisetas, saias, blusas, calças, bermudas, vestidos e colares, bonecas, bichos e adereços. Surgiu a partir da experiência de produzir de forma coletiva 60 mil sacolas para o FSM em 2005. Amadureceu nos espaços da Unisol Brasil e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
Os principais valores desta cadeia é adquirir um produto que não tem agrotóxicos, com uma tecnologia limpa em todo o processo. Sabendo que nos últimos anos 701 agrotóxicos antes proibidos foram liberados pelo Governo Bolsonaro e Temer, sendo que 25% de agrotóxicos do mundo são jogados no planeta através do algodão convencional.
O segundo é não ter atravessadores, então desde o agricultor até a costureira todos ganham entre 50 a 100% pelo seu trabalho em relação ao valor de mercado. Chegando ao consumidor final num valor justo e possível de ser adquirido inclusive pelos que estão no processo produtivo. Segundo a pesquisa da PUC/RS a Justa Trama pratica o menor valor em relação a outras marcas de algodão orgânico, mesmo com o preço justo, pois não tem concentração na mão de um.
As cadeias podem ser curtas como é a cadeia do mel, ela pode se desenvolver toda em uma comunidade, ou mesmo a cadeia do peixe que envolve a criação e a pesca, até o alimento e o artesanato com o peixe e as escamas. A cadeia das frutas pode ser local, ou mesmo dentro de uma cidade ou estado. São processos a serem desenvolvidos, é como montamos nossa estratégia. Olhar para a organização da economia é contraditório trabalharmos de forma isolada. Os pequenos agricultores plantam e entregam aos capitalistas para aplicarem tecnologia de transformação que é feita também por trabalhadores que enriquecem os que montam o negócio, quando poderíamos sim transformar como as agroindústrias, ou as cadeias da castanha, do mel, do arroz orgânico pelos assentamentos entre outras com a ideologia de sermos coletivos sem explorados.
Porque não fazemos todas as cadeias curtas? Porque muitas vezes não existem empreendimentos no local para as várias etapas de produção, e na maioria das vezes nos falta o total conhecimento da tecnologia e mesmo os recursos de investimento para implantar todas as etapas próximas.
Essa caminhada da economia solidária, já não deixa dúvida que não são as distâncias que inviabilizam, nem os custos de logística. As maiores dificuldades geralmente se localizam em nossa capacidade de articulação, investimentos e garantia de comercialização.
Esses processos todos de construção caminham mais rápidos quando tem o apoio da política pública, por isso os governos populares são importantes, ou mesmo quando constroem relações locais, nacionais e internacionais.
A estratégia de desenvolvimento no olhar e na prática da economia solidaria, é sim uma estratégia de desenvolvimento local, que transforma vidas e economias por dentro das comunidades como o bem fazem sobretudo os bancos comunitários com moeda própria e promovendo o consumo local e a geração de renda, e é também uma estratégia nacional que inspira outros, que aproxima as distancias e prova que é possível aplicarmos as práticas de distribuição justa dos ganhos sem essa desigualdade tão gritante que vivemos.
Por fim quero trazer aqui a reflexão feita por Tarso Genro na contracapa do livro as Tramas da Esperança: A economia solidária é o modelo germinal de introduzir, por dentro do sistema do capital, não somente a expectativa de dias melhores, nos quais os humanos compõem o seu destino, mas é também a emoção de compor vários vínculos pelo afeto e pela razão, conscientemente, já que tecem a esperança como presente.
As práticas existentes nos permitem ousar, nos permitem acreditar que há esperança.
-Publicado em 13 de maio de 2021
-Disponível no site: direitosfundamentais.org.br
O post “A ousadia de outra economia” foi publicado em 18th May 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Rede de Gestores