Há pouco mais de um mês, o Ministério Público Federal e o de Minas Gerais, a Defensoria Pública da União e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo peticionaram conjuntamente opondo Arguição de Suspeição em face do douto Juiz Federal substituto da 12ª Vara Federal Cível e Agrária de Belo Horizonte, da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais.
A íntegra da petição está aqui e, por conta de sua gravidade, entendo cabíveis algumas ponderações a respeito dos conceitos de megaconflituosidade e dos papéis desempenhados, numa democracia, pelo Poder Judiciário e pelas quatro funções essenciais à justiça, a saber, o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia em sentido amplo.
O termo “megaconflituosidade” surgiu no Direito Processual Civil Coletivo por conta de certos fenômenos do Antropoceno caracterizados pela existência de diferentes grupos de interesses envolvidos dentro de uma mesma situação fática de mega-lesão coletiva.
Um exemplo atual é a pandemia COVID-19. A ocorrência da doença causada por um vírus letal altamente contagioso atinge indistintamente uma coletividade indeterminável de pessoas. O dano tem natureza difusa.
Suponhamos que, para combater a doença, algumas partes envolvidas na área da saúde decidam criar um cronograma de vacinação adotando um critério objetivo básico: a faixa etária da população.
Ocorre que existem segmentos da população que não estarão contemplados nesse critério. Por exemplo, o de adolescentes com comorbidades. É legítimo que essas pessoas se insurjam contra o critério etário. Mesmo dentro deste grupo, poderão surgir subgrupos. Por isso, não há como resolver uma mega-conflituosidade com soluções simplistas e padronizadas. Será necessário ouvir as partes atingidas, todas igualmente legítimas, que foram vítimas de uma tragédia a que não deram causa.
O Direito Ambiental trabalha com a noção de interesses difusos – aqueles que envolvem uma coletividade indeterminável de pessoas. Foi a forma que se encontrou para contemplar o reconhecimento de titularidade de direitos que se estendem a um número impreciso de pessoas. Por exemplo, quem é o titular do direito a rios limpos, vivos, com todo o seu ecossistema aquático preservado: as comunidades ribeirinhas, o poder público, as gerações futuras, a própria fauna e flora aquáticas?
Para impedir que essa característica difusa da titularidade do direito acabe por fomentar a impunidade, a Lei n. 6.938/81 conferiu, em seu art. 14, § 1º, ao Ministério Público, a missão de buscar a responsabilização civil e penal do poluidor.
Essa missão institucional foi constitucionalizada. Dispõe o Art. 129, III, da Constituição Federal: São funções institucionais do Ministério Público: (…) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; (…).
Analogamente, a Defensoria Pública, também titular do direito de ação civil pública, tem por dever zelar pelos interesses (inclusive difusos e coletivos) da população economicamente hipossuficiente (Lei n. 7.347/85).
Assim, quando um dano ambiental atinge uma coletividade indeterminada, ambas as instituições, Ministério Público e Defensoria Pública, têm o dever de buscar a responsabilização do poluidor, pelos danos que tenha causado ao meio ambiente e à sociedade.
Quanto maior a extensão do dano ambiental causado por um empreendimento, maior será a complexidade na identificação da titularidade e da extensão dos direitos (que podem ser mensurados individualmente).
Isto é natural, já que os ecossistemas, as populações e os processos econômicos de produção não se distribuem homogeneamente no território atingido. Haverá, num determinado espaço geográfico, diferentes elementos da biodiversidade (terrestre, lacustre, fluvial), habitantes de diferentes extratos sociais, no meio urbano ou rural, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e outras populações tradicionais; residências urbanas ou rurais, pequenas propriedades voltadas à agricultura familiar e latifúndios dotados de tecnologia de ponta para a agropecuária. Nesses casos, o mega-poluidor invariavelmente oporá a tradicional dicotomia entre direito ao desenvolvimento e direito à biodiversidade e à qualidade de vida, buscando com isso evitar a internalização dos custos pela produção ambientalmente insustentável.
Em outras palavras, quanto maior for o dano ambiental, mais amplo poderá ser o número de partes legitimadas para essa tarefa, nelas incluídas a Advocacia Pública (procuradorias dos estados e municípios, Advocacia Geral da União), a Empresarial (advocacia privada) e o Terceiro Setor (advocacia do interesse público em sentido amplo). Nenhuma das partes pode ser excluída.
É exatamente essa diversidade de situações que, no caso de mega-acidentes, acaba por provocar mega-conflituosidade, aqui entendida como a possibilidade de surgimento de interesses conflitantes dentro de um mesmo universo de partes lesadas.
Podemos tomar como exemplo perfeito de mega-acidente o inaceitável desastre ocorrido no distrito de Bento Rodrigues, na comarca de Mariana-MG, em 5 de novembro de 2015, ao qual se seguiu o de Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019.
É evidente que os danos causados variaram de caso em caso e, numa situação como essa, é também evidente que as partes mais vulneráveis, dotadas de menor poder de pressão, serão quase sempre as economicamente hipossuficientes e mais céticas quanto à efetividade do Poder Judiciário.
Nesse contexto, cabe ao Poder Judiciário e às funções essenciais à Justiça (in casu, o Ministério Público e a Defensoria Pública), zelarem para que as instituições republicanas não caiam em descrédito, pena de rompimento do chamado contrato social. Essa tarefa não é coisa simples, sobretudo tendo em vista a pressão de setores da economia capazes de postergarem indefinidamente a reparação dos danos que causaram.
O Caso Samarco
Uma notícia que circulou há pouco mais de dois meses mas, aparentemente, não vem merecendo a atenção devida: trata-se de matéria divulgada pela agência de jornalismo investigativo “A Pública”, consistente de um áudio verdadeiramente preocupante.
Nele, a advogada Viviane Aguiar, da Fundação Renova, afirma que estava realizando a reunião a pedido do juiz Mário de Paula Franco Junior, da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte:
“O Dr. Mário mesmo pediu que eu fizesse essa conversa com vocês, até para que ele tenha um direcionamento de como a gente vai seguir”.
Nesse mesmo áudio, a advogada afirma que:
“…ele disse que não vai homologar nenhum caso, não sabe quando ele vai voltar a homologar (…) ele não vai sentenciar. Ele vai fazer um termômetro. Se a coisa continuar como está, isso vai acabar”.
“Isso”, ou seja, a pressão de segmentos da sociedade atingidos pelos danos causados pela Companhia Vale, no caso de Mariana, que não estariam dispostos a aceitar determinado modelo padronizado de indenização fixado e que, valendo-se de instrumentos legítimos de pressão social, buscavam soluções diferenciadas.
Como dito, mega-acidentes são aptos a ensejar megaconflituosidade. E é totalmente legítimo que alguns setores lutem em defesa de direitos que entendem não terem sido contemplados em acordos padronizados.
Se formos dar crédito à fala da advogada, o áudio é verdadeiramente bombástico. Em sendo confirmado seu teor material (integridade da gravação) e ideológico (veracidade das assertivas lançadas pela advogada na gravação), ele, por si só, tem tudo para constituir mais um escândalo judicial.
Em determinada passagem da gravação, a advogada parece que pretende constranger as partes, dizendo que seria muito triste que “meia dúzia de pessoas” destruíssem o que “a maioria” quer. E completa com a ameaça velada:
“Queria que vocês pensassem como vão agir. O doutor Mário mesmo pediu que eu fizesse essa conversa com vocês, até para que ele tenha um direcionamento de como a gente vai seguir”.
Em outras palavras, a gravação indica que a advogada estaria, na prática, assumindo a posição de verdadeira juíza auxiliar. Quando faz isso, extrapola os limites legalmente estabelecidos para a função advocatícia e, para dizer o mínimo, coloca o magistrado federal numa verdadeira saia justa, já que o artigo 145, inciso II, do Código de Processo Civil estabelece que será suspeito o juiz que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa.
A fala, porém, tem tudo para ser uma bravata da advogada, que pretende se apresentar como longa manus do magistrado, sendo difícil de acreditar que este teria orientado uma das partes (Fundação Renova) a transmitir aquele recado.
Se fosse verdade, inevitavelmente estaria caracterizada a suspeição do juiz. Caso contrário, resta saber como agirá o magistrado, que estaria sendo apresentado pela advogada como um aconselhador das partes que ameaça descumprir dever de ofício.
De fato, não pode o magistrado, numa ação plúrima (com grande número de partes envolvidas), impor uma única modalidade de acordo, só porque ela está sendo aceita por um grupo expressivo de pessoas, e ameaçar quem não o aceitar com o clamor público de quem estaria supostamente feliz com o acordo, em última análise obstando o exercício legítimo de oposição.
Se o magistrado tivesse efetivamente afirmado que deixaria de homologar futuros acordos (por exemplo, daqueles que participaram de protesto numa via férrea), em tese teria admitido que planejava descumprir dever jurisdicional, com o intuito de atender os interesses de uma das partes.
Voltando ao exemplo da pandemia, seria o mesmo que proibir as mães de pessoas com deficiência de se manifestarem pela inclusão de seus filhos no grupo de prioridade na vacinação, sob pena de se interromper a vacinação para toda a coletividade. Atitude nesse sentido teria apenas um beneficiário: o governo responsável pela difusão e pelo descontrole da pandemia no país.
No caso de Mariana, estaria beneficiando apenas a Samarco, única responsável pela tragédia socioambiental do Rio Doce.
Não entraremos no mérito da qualidade das minutas padronizadas que foram elaboradas por algumas das partes no processo. Tampouco sugerimos aqui que as assertivas da advogada sejam verdadeiras. Preferível pensar que são apenas bravatas, oratória inapropriada, verborragia extremamente grave, pois distante dos princípios norteadores da Advocacia, que estaria violando diversos dispositivos do Estatuto da OAB (incisos do art. 34 da Lei 8.906/94).
Orientar a instrução processual em benefício de uma parte, buscar a comoção social, visar a estigmatização de quem legitimamente resiste a um acordo que considera pífio e outros procedimentos deste tipo não podem se tornar padrão em nosso país. Já estamos sofrendo demais por conta de recentes teratologias processuais similares. É preciso denunciar toda forma de desrespeito ao devido processo legal e ao estado de direito.
Rough Justice não é “Justiça Possível”. Rough Justice é “justiça grosseira, rude, violenta, irregular”
A peça processual apresentada pelo MPF, MPMG, DPU e DPE dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, contudo, não se limita a apontar esta gravação como indício de suspeição do magistrado.
Em dado momento é feita referência a uma lastimável “Teoria do Rough Justice”, muito mal traduzida para “Teoria da Justiça Possível”. Essa teoria teria sido trazida ao Juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte pelo Presidente da Fundação Renova, após “estudos a partir de outros desastres existentes pelo mundo”.
Não há tradutor que verta o adjetivo “rough” para “possível”. O campo semântico do termo envolve as ideias de acidentado, agitado, áspero, brusco, brutal, descortês, duro, grosseiro, irregular, rude, rugoso, violento.
Não teria como tratar sobre a aplicação dessa teoria no caso do desastre da Samarco, nos limites deste artigo, mas é possível concluir que o desastre de Mariana não teve nenhum equivalente no resto do mundo.
Assim, é de se indagar se houve algum modelo alienígena que tenha sido hábil para solucionar um dano do tamanho daquele causado pela Samarco, multinacional que se mostrou empresarialmente incompetente para explorar minérios no Brasil sem colocar em risco a vida da população, a biodiversidade e a cultura de toda a povoação às margens do Rio Doce.
Um autor que fala sobre a tal “Rough Justice” é Michael J. Pfeiffer, autor de “The Roots of Rough Justice: Origins of American Lynching”, relacionando essa teoria com a prática de linchamentos nos EUA.
Outro autor é Jess Bravin, autor de “The Terror Courts: Rough Justice at Guantanamo Bay”, que se serve de tal conceito para tratar da completa dissociação entre Estado de Direito e as práticas adotadas pelos EUA para arrancar confissões de supostos criminosos pelos atentados de 11 de setembro de 2001.
Igualmente revelador é o conteúdo do livro “Rough Justice: The International Criminal Court in a World of Power Politics”, de David Bosco, dissecando os crimes cometidos contra a humanidade por líderes políticos determinados e a inefetividade do Tribunal Penal Internacional, sobretudo quando o réu são os EUA.
Se a 12ª Vara Federal estaria ou não adotando esse famigerado conceito de “Rough Justice”, também não vem ao caso. Quero crer que a excelência da atuação de algumas das partes envolvidas, notadamente dos membros das três funções públicas essenciais à Justiça (MPF, MP-MG, MP-ES, DPU, DPE-MG, DPE-ES, AGU, AGE-MG, PGE-ES) e de advogados que vêm atuando “pro bono” na defesa dos atingidos, não aceitariam a tese do “ou concordam conosco ou não terão nada” – essência da teoria da justiça rude, irregular, violenta.
É claro que nem todos haverão de aceitar um sistema baseado em “Rough Justice”, ainda que tenha sido criada uma “plataforma online supersimples onde o atingido ou o advogado dele entra, acessa o sistema e tem direito à indenização”.
Transparência processual
A peça do MPF, MPMG, DPU, DPE/MG e DPE/ES informa que “o sistema indenizatório simplificado foi criado a partir de reuniões informais entre o juiz da causa, as empresas e as advogadas das Comissões, reuniões estas que não foram registradas nos autos, não foram informadas às partes processuais e nas quais o juiz da causa tomou a iniciativa de orientar as partes sobre como o processo deveria ser proposto e conduzido dali em diante”.
De acordo com as instituições peticionárias, o referido formato de relacionamento do juiz com as partes não teria sido registrado nos autos, afrontando o Código de Processo Civil. Poupo-me de reinventar a roda para dizer da imprescindibilidade da participação de todas as funções essenciais à Justiça em ações que envolvem os direitos à vida, à saúde, à cultura, ao patrimônio público, aos povos indígenas, aos ecossistemas etc.
É inteiramente legítimo que as funções essenciais à Justiça, que já são remuneradas pelos Cofres Públicos e, por esse motivo, não buscam honorários advocatícios, mas, apenas, a consecução do interesse público, estejam presentes em todas as fases dos procedimentos judiciais. E, quando falamos em funções essenciais à Justiça, naturalmente estamos também incluindo as Procuradorias dos Municípios afetados pelo desastre da Samarco.
Ritmo das decisões
Finalmente, não posso deixar de notar que a arguição de suspeição não chega a abordar um aspecto que, a mim, chama a atenção – isto é, a reparação ambiental propriamente dita, a recuperação plena da biota do Rio Doce.
A peça processual inclui um gráfico apontando o tempo dispendido pelo magistrado na solução de determinados tópicos relacionados ao Eixo Prioritário nº 07, criado nos autos nº 1000415-46.2020.4.01.3800 especificamente para dirimir controvérsias acerca do tema “Cadastro e Indenizações”.
Caberia a pergunta: e a quantas andam os eixos temáticos que não atraem o interesse direto de escritórios de advocacia, como é o caso dos reassentamentos, da retirada da lama tóxica do leito do rio, do repovoamento da ictiofauna e da reconstituição da mata ciliar?
O assunto está muito longe de ser esgotado neste artigo e estas linhas constituem apenas considerações rápidas redigidas para ((o))eco, com a finalidade de fomentar um debate sobre o tema, que parece um tanto adormecido.
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O post “Notas sobre a suspeição no caso Samarco: Rough Justice é Justiça Imperfeita” foi publicado em 13th May 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco