Com apenas 11 indivíduos maduros e restrita a um habitat de aproximadamente 400 hectares nas montanhas do Espírito Santo, a saíra-apunhalada é considerada uma das aves mais ameaçadas do mundo. O pequeno pássaro de cerca de 12 centímetros e papo vermelho-sangue, que lhe rendeu a alcunha um tanto cruel de “apunhalada”, uniu um grupo de pesquisadores, organizações e até uma empresa de energia elétrica para produzir um Plano de Ação que garanta a sobrevivência da espécie que, além de criticamente ameaçada ainda carrega várias incógnitas sobre sua identidade e biologia.
Primeiro, cabe apresentá-la: a saíra-apunhalada (Nemosia rourei) é uma ave de dieta insetívora que ocorre apenas na Mata Atlântica no estado do Espírito Santo, em altitudes entre 850 e 1.250 metros. A espécie foi descoberta e descrita para ciência em 1870 e foi vista de novo apenas em 1941. Depois, foram mais de 50 anos desaparecida novamente, período no qual chegou a ser considerada extinta pelos ornitólogos, até que foi redescoberta em 1998 por uma equipe que fazia o levantamento de aves no município de Conceição Castelo.
Em 2020, como contrapartida para o licenciamento ambiental de uma linha de transmissão de energia que passa próximo da área de ocorrência da saíra-apunhalada, a empresa Transmissora Caminho do Café (TCC/ALUPAR) passou a financiar um programa de conservação para espécie , executado pelo Instituto Marcos Daniel (IMD).
“Ela sempre foi uma espécie rara, mesmo no passado quando havia uma cobertura florestal maior. Desde que ela foi redescoberta, em 1998, houve poucas visualizações dela. Em 2003 ela foi vista numa região chamada Mata de Caetés [no município de Vargem Alta] e desde então ela tem sido vista apenas lá”, conta o médico-veterinário Marcelo Renan Santos, presidente do IMD, que já atuava no território com estudos sobre a saíra-apunhalada.
A Oficina para Conservação da Saíra-apunhalada foi realizada ao longo de quatro dias no mês de abril e reuniu 50 especialistas de oito países para discutir as ameaças e elaborar um Plano de Ação para a conservação da espécie nos próximos cinco anos. Além do Instituto e da empresa de energia, houve participação de representantes do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação das Aves Silvestres (CEMAVE/ICMBio), da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), do Parque das Aves, Instituto Claravis, o Centro de Sobrevivência de espécies Brasil, da SAVE-Brasil. O Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) também participou do evento, assim como alguns proprietários de terras da região.
Até o início do mês de junho, um documento final será redigido e entregue aos órgãos governamentais com as ações previstas para garantir a conservação da espécie, na expectativa de que a proteção da saíra-apunhalada se torne uma política pública. “Com esse documento, além do reconhecimento em âmbito federal, a gente espera que o plano seja reconhecido como uma política estadual. E aí passa a se tornar uma demanda que o estado precisa abraçar. Isso vai trazer muita força para as ações que a gente precisa desenvolver”, pontua o presidente do IMD.
De acordo com Marcelo, um dos desafios para conservação da saíra-apunhalada é que a ave se restringe a habitats de mata primária e bem preservada. “Ela é insetívora e o comportamento dela é de procurar insetos embaixo de cascas de árvores cobertas por líquens e musgos, que são características de matas mais antigas. Lá na região de Caetés, por exemplo, nós temos matas com aproximadamente 50 anos de recuperação e ela [a saíra] não ocorre nessas matas. Só ocorre em pequenas áreas de mata primária, que é o que menos tem”, explica o médico-veterinário que aponta a perda de habitat como a principal causa que levou a saíra-apunhalada a estar nesta condição populacional tão dramática.
“A área que ela ocupa hoje tem mais ou menos 400 hectares apenas. Essa é a área de vida que a gente conseguiu determinar até agora”, conta o pesquisador. Apesar de pequena, a área da Mata de Caetés abrange três municípios – Santa Teresa, Domingos Martins e Vargem Alta. Neste território há apenas duas unidades de conservação, a Reserva Biológica Augusto Ruschi e a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Águia Branca, todo o resto são propriedades rurais particulares.
Uma das recomendações dos especialistas para garantir a sobrevivência da saíra-apunhalada é justamente ampliar as áreas protegidas na Mata de Caetés. “Porque a maior parte desses 400 hectares está dentro de propriedades privadas que não são protegidas. Apesar dela ocorrer na RPPN Águia Branca, que tem 2 mil e tantos hectares, ela só usa 100 hectares lá, que é só o alto do morro onde tem uma mata preservada que faz divisa com outras propriedades”, detalha Marcelo.
Além do habitat reduzido, a saíra enfrenta outras duas ameaças: agrotóxicos e as mudanças climáticas. “Como ela é uma espécie insetívora, os pesticidas podem comprometer a disponibilidade de alimento para ela ou provocar uma contaminação através da cadeia alimentar que pode comprometer o desempenho reprodutivo da ave. No entorno das matas em que ela ocorre há muitos plantios de tomate, morango, de hortifrutigranjeiros que recebem uma carga muito grande de pesticidas, então a gente supõe que isso pode ser mais um fator de risco para sobrevivência da espécie”, alerta Marcelo. Com relação às mudanças climáticas, o pesquisador lembra que ela é muito especializada em ambientes de altitude, mais frios e úmidos, e as previsões de mudanças climáticas para o Espírito Santo são de diminuição de chuvas e aumento de temperatura para os próximos 50, 100 anos. “Então no longo prazo, provavelmente deve haver alterações nas características do ambiente que podem comprometer a sobrevivência dela”, completa.
A conservação da saíra-apunhalada enfrenta ainda outro gargalo: o pouco que se sabe sobre ela. “Ela foi descrita em 1870 e provavelmente está classificada no gênero errado. Porque, por exemplo, ela não tem bico de uma ave insetívora exclusiva, mas estamos descobrindo que ela é insetívora exclusiva. A biologia dela não bate com o grupo taxonômico em que ela está inserida. Nós conseguimos duas penas que caíram do ninho e encaminhamos pros pesquisadores que vão fazer a parte genética, para eles extraírem o DNA e compararem com o DNA das outras aves para fazer a classificação taxonômica correta. Então uma das ações que vamos ter que desenvolver é descobrir melhor que bicho é esse, porque provavelmente é uma espécie única, de um gênero específico”.
A falta de conhecimento sobre a biologia da saíra-apunhalada também inviabiliza a possibilidade de tentar criá-la em cativeiro, considerada pelo pesquisador uma alternativa extrema. De acordo com ele, o objetivo é desenvolver atividades de manejo integrado em campo, como a proteção de ninhos, o acompanhamento do desenvolvimento dos filhotes, monitoramento dos bandos e até uma tentativa de reforço na alimentação dos bichos em seu habitat. “Na medida em que vamos aprendendo a história natural da espécie, vamos identificando as características dela e tentando colaborar com a sua sobrevivência e com o seu desempenho reprodutivo”, explica.
A reprodução das saíras-apunhaladas representa por si só um desafio biológico aos esforços de conservação. Isso porque a ave, que constrói seu ninho uma única vez por ano, entre outubro e dezembro, tem um comportamento peculiar: cada bando (de 5 a 6 indivíduos) cuida de um único ninho por vez. Ou seja, todos eles se envolvem com uma única ninhada ao invés de multiplicarem os ninhos na temporada reprodutiva. E pelas observações feitas em campo, cada ninho gera apenas dois filhotes.
“Nos anos em que a gente conseguiu encontrar ninho, nós só encontramos um ninho e o bando todo cuida do ninho. Isso também é um aspecto da biologia que dificulta a sobrevivência. Se a gente conseguir garantir que esses dois indivíduos que nascem na temporada reprodutiva sobrevivam, com o passar do tempo vamos começar a ter o aumento populacional, principalmente se esses bandos começarem a aumentar e se dividirem, porque aí vamos começar a ter mais ninhos simultaneamente. O fundamental em termos de ação direta é essa proteção dos ninhos e garantia da proteção da espécie. Nós temos uma equipe de 16 biólogos para conseguir acompanhar as aves e monitorar os ninhos. É um trabalho intenso, com um resultado que a gente entende que é pequeno e de longo prazo, que exige muita perseverança, porque é de 2 em 2 filhotes que eles vão chegar em 200 e garantir a sobrevivência da espécie”, avalia Marcelo.
Atualmente existem dois bandos conhecidos, um em Caetés, em Vargem Alta, com seis indivíduos e outro em Santa Teresa, na Reserva Biológica Augusto Ruschi, com 5 indivíduos. Em 2020, a equipe do Instituto Marcos Daniel monitorou em tempo integral o ninho da reserva para garantir a sobrevivência dos filhotes. “No ano passado tinham 5 bichos, sobreviveram os dois filhotes, então a gente aumentou a população em 40%”, comemora o médico-veterinário. “Esse monitoramento intensivo é uma das estratégias essenciais para a gente garantir o desempenho reprodutivo da espécie”, completa.
Outra informação que os pesquisadores ainda não têm – e que é fundamental – é, dentro de cada bando, quantos indivíduos são fêmeas e quantos machos, pois como não há diferenças morfológicas entre os sexos, é impossível precisar apenas por observação. “A gente vê que tem um bicho que fica no ninho, mas a gente não sabe se é o macho ou se é a fêmea que incuba, por exemplo”, conta Marcelo. Uma das ações previstas pela oficina é justamente um estudo populacional com anilhamento, durante o qual será feita a sexagem.
Envolvimento da comunidade
Outro pilar previsto como fundamental pelos especialistas que participaram da oficina para conservação da saíra-apunhalada é o envolvimento da comunidade do entorno, através de ações de educação e sensibilização, e de valorização do ativo ambiental.
“Nós fizemos um diagnóstico com 30 propriedades que ficam no entorno da área de ocorrência da saíra-apunhalada e a maioria dos proprietários nem sabia da existência da ave. Esse trabalho de envolvimento comunitário também está contemplado dentro do Plano de Ação que foi proposto. Estamos começando do zero a educação ambiental nas comunidades do entorno, nas propriedades rurais e nas escolas da região, envolvendo as secretarias de Educação e de Meio Ambiente das prefeituras”, conta Marcelo Renan.
O turismo de observação de aves é outra aposta dos pesquisadores para valorizar a proteção da saíra-apunhalada e seu habitat remanescente. “Essa é uma das regiões turísticas mais importantes do Espírito Santo e já fizemos um levantamento sobre esta atividade de observação de aves, identificamos quem são os hotéis, os atores do setor que já desenvolvem alguma relação com este tipo de turismo, e nós desenvolvemos um roteiro de observação de aves que vamos discutir junto ao trade turístico para capacitação do setor e para o desenvolvimento da atividade”, revela o médico-veterinário. “Nós acreditamos que o turismo de observação de aves é uma grande ferramenta de conscientização, mas se for mal conduzida é um problema, então queremos fazer um trabalho de capacitação dos atores do trade turístico, inclusive estamos montando um curso de condutores de turismo de observação de aves para os condutores locais, para que essa atividade seja desenvolvida de uma forma correta”, acrescenta.
O presidente do IMD destaca ainda o pagamento por serviços ambientais como uma ferramenta para tornar economicamente viável e atraente para os produtores rurais a conservação. Ele destaca que atualmente a única iniciativa que faz esse tipo de compensação financeira aos proprietários no estado capixaba é o Programa Reflorestar, voltado para a questão dos recursos hídricos e o reflorestamento e preservação de áreas de mananciais, mas a equipe do Instituto articula a ampliação do escopo do programa, para que ele contemple também o ativo da biodiversidade como elegível para a compensação financeira.
Incerteza no PAN
Por sua atuação com a saíra-apunhalada, o Instituto Marcos Daniel (IMD) entrou recentemente no âmbito do Plano de Ação Nacional (PAN) para as Aves da Mata Atlântica, como executor de ações referentes à saíra-apunhalada, mas o pesquisador destaca que há incertezas ainda sobre como será construída formalmente a atuação dentro do PAN, diante das mudanças recentemente impostas pelo governo federal com uma retificação publicada em março de 2021 que altera a composição e funcionamento do PAN. Marcelo esclarece ainda que a maioria das ações estão nas mãos da própria sociedade civil, tanto de organizações do terceiro setor quanto de empresas.
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O post “Pesquisadores se unem para salvar uma das aves mais ameaçadas do mundo” foi publicado em 9th May 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco