Por causa da pandemia, minha mãe não terá velório nem nada. Ela morreu na quarta , 17 de março, às 20:30, de câncer, não de covid, mas agora definitivamente não é hora de aglomerações. Foi cremada, o que ela queria. Ainda espalharemos suas cinzas.
Relatos sobre ela são uma forma de homenageá-la, de manter viva sua memória. E também servem de consolo para tanta gente que a conheceu. Não há dúvida que ela foi muito amada.
Meu irmão Ignacio Aronovich , fotógrafo profissional que mora em São Paulo, veio aqui pra Fortaleza despedir-se da minha mãe no final de fevereiro.
Fazia tempo que eu não via minha mãe sorrir. Ele tirou várias fotos maravilhosas, inclusive do globo terrestre, que ele menciona no texto (minha mãe guardou o globo esses anos todos, lógico).
Publico aqui o que o Ig escreveu no avião, voltando pra SP depois de vê-la.
Thanks, Mama.
Se fotografo é porque tive o primeiro contato com a fotografia através da Pentax da minha mãe. O primeiro fotograma.
Na música, Beatles, Rolling Stones, Billie Holliday, Pink Floyd, e inúmeros outros em vinil.
O amor pela leitura desde sempre. Ler I am Legend, O Dia dos Trífidos, O Homem Ilustrado, e muitos outros em idade muito antes que a recomendada, através dela. Livros de arte nas prateleiras. Assinaturas de revistas como Time e Newsweek onde cresci vendo fotos de Susan Meiselas, Chris Morris, Peter e David Turnley e outros.
Cerâmica, pintura, desenho, nanquim, colagens.
Um globo terrestre, o atlas, o canivete suíço, foram presentes dela. Viajei muito antes de poder viajar de verdade.
Adesivos de ongs ambientalistas que ela trouxe de Berlim. Contos da Patagônia. Visitas a museus e galerias.
O soufflé de queijo,
a sachertorte , a torta de frango, a mousse de chocolate, eram parte do repertório de receitas dela.
Um lado hippie, carefree, livre, era dela. Foi voluntária de estudo clínico de LSD. Falar abertamente sobre drogas e álcool, sem tabus.
Não tenho nenhuma ilusão de perfeição e tenho muitas perguntas sem respostas, mas serei eternamente grato e ciente do enorme privilégio de ter sido filho da Nelly. Antropóloga, historiadora, viajante, meio espanhola, meio Abipone, minha mãe.
Love you always.
Não escrevo isso como um obituário mas como uma homenagem e um agradecimento.
Gratidão eterna para a Lola e para o Silvio por cuidarem dela com tanto amor e carinho até o último momento.
Em um país onde as pessoas estão morrendo sem parar, isoladas, longe da família, me conforta saber que ela descansou sem dor, sem sofrimento prolongado.
Muito obrigado sempre, mãe.