Não posso negar que na primeira vez que realizei a travessia das Sete Quedas, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, fiquei bastante incomodado com a quantidade de setas laranja pintadas ao longo da trilha, que, de certa forma, quebravam um pouco o encanto daquela bela paisagem natural em meio ao Cerrado e aos campos rupestres do Planalto Central. Isso foi em julho de 2015, quando ainda pouco se falava sobre trilhas de longo curso no Brasil. Naquela época, apesar da Transcarioca já existir, outras trilhas como a Transmantiqueira e a Transespinhaço não passavam de uma ideia, ou nem isso. Neste mesmo ano, Pedro da Cunha e Menezes lançava pelo WWF o manual “Parques do Brasil, Sinalização de Trilhas” , com exemplos bastante ilustrativos sobre sinalização rústica, já bastante utilizada em outros países e que começava a ser adotada no Brasil.
Foi também em 2015 que passei a trabalhar na implantação da travessia Alto Palácio – Serra dos Alves, no Parque Nacional da Serra do Cipó (MG), que viria a fazer parte da Transespinhaço em meados de 2018. Nas primeiras etapas da implantação da travessia, minha posição ainda era radicalmente contra a sinalização rústica. Macular as belas paisagens da Serra do Cipó com setas pintadas? Jamais!
Para marcar o traçado inicial dessa trilha, adotamos estacas finas de madeira com a extremidade pintada de amarelo, dispostas em pontos específicos, de maneira a indicar o rumo a ser tomado. Na medida em que a trilha ia ficando nítida no solo, as estacas eram retiradas e/ou transferidas para outros trechos. Esse procedimento foi fundamental para orientar os primeiros usuários e evitar a abertura de atalhos e trilhas secundárias. Mas, na medida em que cada vez mais pessoas se interessavam em realizar a travessia, a necessidade de adotar um sistema de sinalização passou a ser uma prioridade.
Realizamos diversas oficinas para a definição de uma proposta para a sinalização inicial da travessia que fosse viável diante das limitações de recursos financeiros, de mão-de-obra e das dificuldades logísticas impostas pelo relevo da região. Ao final, a sinalização por meio de setas pintadas foi aceita como a solução mais adequada.
Em um curto espaço de tempo, houve uma rápida evolução no entendimento da praticidade e da importância da sinalização rústica, não apenas nas trilhas de longo curso, mas também em trilhas menores, principalmente dentro das unidades de conservação. Isso se deu graças ao esforço de pessoas envolvidas com iniciativas pioneiras na implantação de trilhas de longo curso, que se dispuseram a promover a prática desse tipo de sinalização nos quatro cantos do país, dentre elas o Ivan Amaral, da Trilha Transcarioca, e o Pedro Menezes, sem desmerecer outras tantas que enxergaram o potencial de um movimento crescente que viria a culminar na Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso.
Assim como eu, muitas pessoas que, a princípio, eram contrárias à sinalização rústica, passaram a ser entusiastas da prática, desde que, é claro, realizada dentro de critérios mínimos que levem em consideração a menor interferência possível na paisagem. Ainda assim, são frequentes acusações de pichação e críticas negativas, normalmente feitas por pessoas indignadas que não tiveram a oportunidade ou não se interessaram em compreender melhor essa técnica.
O desejo da maioria dos montanhistas é caminhar por regiões quase intocadas, onde a interferência humana nas trilhas seja mínima. Entretanto, na medida em que o roteiro passa a ser conhecido e frequentado por um número crescente de pessoas, a sinalização torna-se necessária, não apenas para indicar o caminho correto, mas também como uma forma de mitigar impactos negativos no ambiente natural, decorrentes da abertura de atalhos e trilhas secundárias, especialmente em áreas mais suscetíveis a processos erosivos ou em locais de maior sensibilidade ambiental.
Na maioria dos casos, quando uma sinalização adequada não é adotada, o próprio usuário se encarrega de “sinalizar” a trilha, quase sempre de maneira precária e imprecisa, o que, inevitavelmente resulta em uma profusão de totens de pedra, fitas plásticas e até pichações.
Cabe ressaltar que o excesso de sinalização também deve ser visto como algo negativo, pois polui visualmente o local. Em trilhas cênicas como a Transespinhaço, onde predominam áreas abertas, a sinalização deve ser adotada com parcimônia, de forma a servir ao caminhante e não apenas como um elemento disruptivo em meio a uma bela paisagem. Assim, é fundamental levar em consideração o nível de interferência da sinalização em um determinado local e avaliar corretamente onde ela realmente se faz necessária. Para tanto, um mínimo de planejamento prévio é sempre desejável.
A sinalização é um componente fundamental em qualquer trilha de longo curso, não apenas para transmitir aos usuários informações sobre o sentido preferencial e mudanças de direção ao longo do percurso, mas, principalmente, por conferir uma identidade à trilha. E não se trata de uma ideia nova. A utilização de marcas pintadas, na forma de barras, símbolos ou setas já vem sendo adotada em outros países há muito tempo. Nosso grande mérito foi a padronização de um sistema original, simples e autoexplicativo de sinalização, na forma de pegadas pretas ou amarelas inseridas dentro de uma seta, conforme detalhado no Manual de Sinalização de Trilhas do ICMBio .
Também é importante destacar que a sinalização rústica não é definitiva, uma vez que a durabilidade da pintura exposta a intempéries no ambiente natural é limitada, exigindo revisões frequentes. O desgaste prematuro da sinalização, que foi visto inicialmente como um problema, também pode ser entendido como algo positivo, na medida em que obriga o mantenedor da trilha ou de um segmento de uma trilha de longo curso, a ter um controle maior sobre ela, especialmente no que diz respeito às necessidades de manutenções periódicas de uma maneira geral, não apenas da sinalização, mas também em ações como o controle de processos erosivos, correções no traçado, entre outras.
Todo esse trabalho feito por voluntários não deixa de ser um processo de aprendizado colaborativo, sujeito a erros e acertos. Por este motivo, toda crítica é sempre bem-vinda, desde que fundamentada em critérios lógicos, tendo em vista que as principais funções da sinalização rústica estão consolidadas: orientação, pertencimento e conservação do ambiente natural.
A maior parte das trilhas de longo curso no Brasil partem de um projeto coletivo, com governança na forma de uma rede horizontal de cooperação, conduzida por pessoas motivadas pelos mesmos ideais e objetivos. A força e a beleza do movimento podem ser facilmente percebidas nos seminários de planejamento e nos mutirões de sinalização, onde montanhistas, condutores, chefes e funcionários de unidades de conservação, membros de ONGs e demais representantes dos mais diversos setores da sociedade atuam, de igual para igual, indistintamente, em prol de um interesse comum. Apoie e faça parte dessa iniciativa!
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O post “Pichadores de trilhas de longo curso?” foi publicado em 23rd March 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco