Nascemos para correr longas distâncias. Na verdade, evoluímos através de mutações que nos tornaram mais adaptáveis ao meio, nos permitiram conseguir mais recursos, digo, alimentos, e perpetuar esses genes para gerações futuras. Com mais fartura e variedade de alimentos, nosso cérebro ficou mais plástico, permitindo que nos organizássemos melhor socialmente e nos tornássemos mais criativos na busca de soluções para obter comida. A partir daí, surge um comportamento cultural que até hoje é praticado pelas sociedades tradicionais nas savanas africanas. Essas etnias seriam descendentes diretas do homo sapiens ancestral e são a comprovação de que evoluímos para correr grandes distâncias.
A caçada de persistência consiste na perseguição de uma presa por um pequeno grupo de caçadores-coletores com uma estratégia muito peculiar. Uma vez que conseguem isolar a caça do restante da manada, a perseguem por vários quilômetros até que ela esteja esgotada fisicamente pelo aumento da sua temperatura corporal. Nesse momento, o caçador-coletor mais descansado investe contra a caça para finalmente encerrar a ação.
Interessante que tudo isso só acontece por conta das adaptações evolutivas que nos tornam os mamíferos mais eficientes quando o assunto é endurance, vulgo resistência. Possuímos um tronco curto e membros inferiores compridos com ossos longos e densos, nossos pés se desenvolveram com arcos plantares e uma membrana pouco elástica na planta – fáscia plantar que junto com um longo tendão calcâneo e a banda ílio-tibial possuem a capacidade de gerar “energia livre” para nos impulsionar adiante enquanto corremos.
Além disso, possuímos pouco pelo corporal, transpiramos para manter a termorregulação e respiramos em um ritmo diferente da nossa cadência ou frequência de passada. Essas duas últimas características permitem o sucesso na caçada de persistência, uma vez que mamíferos quadrúpedes só conseguem respirar no mesmo ritmo da sua passada enquanto trotam ou correm.
A forma como corríamos persistiu praticamente inalterada até o fim da década de 1960, quando um livro chamado “Jogging” (1967) foi publicado com a intenção de apresentar uma nova forma de se exercitar e melhorar a condição cardiovascular. O fato é que essa nova forma era um híbrido entre o padrão da pisada do caminhar – do calcanhar para a frente pé –, com o padrão de saltos sucessivos da corrida, alterando todo o comportamento biomecânico e promovendo desconforto, uma vez que a força de reação do solo age numa área muito pequena do calcanhar, como se fosse uma martelada.
Coincidente ao livro e em resposta ao problema que “surgiu” com ele, foi apresentada a primeira mudança tecnológica nos tênis: a sola com amortecimento.
Com mais conforto, a pisada tendo início no calcanhar – o retropé –, ficou mais comum, e levou a uma série de problemas, sempre respondidos com novas soluções tecnológicas.
O termo jogging – que no português se traduz como corrida – saiu de cena e correr com o retropé passou a ser uma variação no padrão de corrida. Junto a isso, enfraquecemos nossas estruturas, principalmente dos pés e as que atuam neles, pelo uso excessivo de tecnologia e até pela moda vigente, o que acabou por, entre outros fatores, favorecer o surgimento de lesões não-traumáticas. Mas isso é um outro papo.
Corrida de rua x corrida em trilhas
Correr é algo inerente e natural para nós, seres humanos. Em termos gerais, todo mundo pode correr. E se você já corre, parabéns! Mas correr na rua, no asfalto, é um pouco diferente do que se aventurar a correr em trilhas. Na verdade, é muito diferente.
Quando corremos na rua, geralmente por uma ciclovia ou até mesmo numa pista de atletismo, nossa única preocupação está em cumprir uma determinada distância em um determinado tempo, baseado na nossa velocidade ou pace (o ritmo). Ou seja, nós sabemos o tempo que levará se corremos a distância desejada numa determinada velocidade. Na maioria das vezes, apenas calçamos nossos tênis e saímos.
Na trilha, não. Raramente iremos cumprir aquela distância que corremos no asfalto no mesmo tempo. Nossas referências passam a ser o tempo de duração e a percepção subjetiva de esforço. Existe uma série de fatores que contribuem para que isso ocorra, a começar pelo piso do terreno e para isso, investir num modelo específico vale a pena.
Trilhas possuem solos acidentados nas mais diversas configurações. Você encontra areia de praia, terra batida, lama, riachos, pedras, raízes… Sem falar nos galhos de árvores que vão surgindo à sua frente e nos obrigam a olhar para o chão e para frente constantemente. Muitas vezes levamos junto conosco algum equipamento, alimento e hidratação em mochilas e cintos que aumentam a sobrecarga. Além disso, existem os desníveis. Subidas e descidas que, somadas ao piso, nos fazem mudar o padrão motor constantemente. Tudo isso exige mais do nosso corpo e da nossa atenção, é uma dupla-tarefa.
Uma boa opção para quem pretende correr em trilhas é começar em percursos urbanos que tenham ladeiras, para enfrentar subidas e descidas e ajustar o corpo à variação de padrão motor, estimulando os grupamentos musculares que são mais exigidos nas trilhas de um modo em geral. Costumo dizer que essas corridas subindo ladeiras são treinos de velocidade disfarçados. Sempre que puder, use o equipamento e a alimentação que carregará na corrida na trilha durante os seus treinos.
Você pode começar devagar, sem pressa. Espere se adaptar e ficar confortável durante as sessões de treino para então aumentar as cargas progressivamente. É claro que se você tiver condições de buscar a orientação de um profissional de Educação Física especializado vai ser muito melhor.
Invista no fortalecimento geral do seu corpo, com mais ênfase nos membros inferiores, seja com musculação, treino funcional, cross training ou qualquer outra prática que promova isso.
Habitue-se, se tiver condições, a se deslocar por trilhas, alternando caminhadas leves e fortes com breves trechos de corrida, mas evite treinar em trilhas sozinho, principalmente se você não conhece bem o percurso e tem pouca experiência. Coloque sempre sua segurança em primeiro lugar, avise para onde vai e quando pretende voltar, leve um kit de primeiros socorros e utilize, se puder, um localizador em tempo real.
Leve em consideração que o estresse mental pode contribuir negativamente para percepção subjetiva de esforço e gerar falhas de atenção, portanto é importante não realizar uma atividade cognitiva muito exigente antes de uma corrida em trilhas, principalmente quando esta for de longa duração.
Não se esqueça de planejar sempre e de trazer consigo todo o lixo que produziu. No mais, bons treinos, boa trilha e divirta-se.
Assista a live da Rede Brasileira em parceria com ((o))eco sobre como se preparar para correr em trilhas:
*Carlos Perruci Faria é formado em Educação Física e especialista em Treinamento Esportivo e Corrida
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O post “Da caçada de persistência às corridas em trilha, fomos feitos para correr” foi publicado em 21st March 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco