Não é fácil proteger os peixes das nuvens, também conhecidos como rivulídeos ou peixes anuais. Isso porque, em parte do ano, eles ficam invisíveis, com seus ovos adormecidos dentro da terra à espera das primeiras chuvas que transformarão seu berçário terrestre numa poça ou lagoa. Só então, os peixes das nuvens “dão as caras” e aproveitam sua existência sazonal, vinculada às áreas úmidas temporárias. No litoral do Ceará, as obras de duplicação da rodovia CE-452 aterraram parte do único habitat conhecido de um destes peixes singulares, o Hypsolebias longignatus, endêmico do Ceará. Considerado vulnerável à extinção, o peixe pode já estar extinto devido às intervenções feitas pelo empreendimento no seu ambiente natural, alertam pesquisadores.
Até então, as ocorrências desta espécie são restritas a um único local: uma pequena lagoa temporária de apenas 0,4km² próxima à Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio Pacoti, no município de Aquiraz, no litoral do Ceará. Se o peixe das nuvens de fato estiver restrito à lagoa onde ele já é conhecido, as chances de que ele tenha sido extinto com o aterramento são grandes, conforme explica o biólogo Telton Ramos, que integra o time de pesquisadores do Plano de Ação Nacional para a Conservação (PAN) dos Peixes Rivulídeos . Telton foi o responsável pela denúncia do aterramento, feita em dezembro último, e que resultou no embargamento temporário da obra pelo Ibama, no dia 13 de janeiro deste ano.
“Eu vi que estavam aterrando ali – e a espécie é conhecida apenas naquela lagoa – e fiz a denúncia. Eu faço parte do PAN dos rivulídeos e no grupo tem pessoas do ICMBio, que acionaram o Ibama do Ceará, que embargou as obras”, conta. “E quando eles souberam da denúncia, de madrugada, você ia lá e os caminhões estavam trabalhando. Eles começaram a acelerar o processo porque eles sabiam que iam ser embargados. E eles aproveitaram e jogaram muita terra mesmo”, completa.
((o))eco questionou a Superintendência de Obras Públicas sobre quanto da área já havia sido aterrada pelo empreendimento, mas esta limitou-se a responder que “está tomando todas as providências exigidas pelos órgãos ambientais”. A superintendência foi criada em 2019 e substitui o antecessor Departamento Estadual de Rodovias, tutela sob a qual foi dado início às obras, em 2018.
O esclarecimento definitivo sobre o real impacto das intervenções na população da espécie precisará aguardar as chuvas, para que elas formem as lagoas temporárias e seja possível ver se ainda há Hypsolebias longignatus sobreviventes. A temporada das chuvas na região é esperada para começar neste mês de fevereiro.
“Tinham vários caminhões fazendo o aterramento. Eles estavam aproveitando o período de seca. Porque quando chove, aquilo ali enche e eles estavam fazendo tudo às pressas porque em breve vão começar as chuvas. Se eles aterram, o que que acontece? Os ovos estão ali. Essa espécie é chamada de peixe das nuvens exatamente porque as pessoas pensam que eles vêm através das nuvens ou das chuvas. Mas, na verdade, quando a lagoa seca, os ovos ficam ali. Se eles aterraram todos os ovos, simplesmente a espécie está extinta”, resume Telton, especialista em peixes de água doce.
O biólogo acrescenta ainda que ainda há outro agravante na intervenção, “ali é área de manguezal, que são ambientes protegidos, Áreas de Preservação Permanente (APP), e também é área de nascentes de afluentes do rio Pacoti”.
Paralelo ao embargo feito pelo Ibama, a obra se encontra paralisada também pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) do Ceará, que explica que a licença de instalação para construção e ampliação da rodovia CE-452 (também conhecida como Avenida Torres de Melo) foi emitida em novembro de 2018 com vigência até 22 de novembro de 2020. Para renovar a licença, em análise na Diretoria de Controle e Proteção Ambiental (DICOP), foi solicitado que dentro do prazo de 90 dias – ou seja, até o final de fevereiro – seja apresentado: Autorização para Manejo de Fauna Silvestre – Etapa: Levantamento; e um inventário da ictiofauna (relativo a peixes) em um raio de 1.500 metros a partir das coordenadas (3°53’51″S e 38°24’13″W ), para avaliação da diversidade de peixes endêmicos, “notadamente da ocorrência da espécie Hypsolebias longignatus”. De acordo com a Semace, os levantamentos têm como objetivo “garantir a melhor análise da intervenção” e somente após os estudos, “será possível definir as providências a serem adotadas”.
A obra ocorre por uma extensão de 1,31km, no entroncamento com a rodovia CE 040, na vizinhança da APA do Rio Pacoti, e é atualmente de responsabilidade da Superintendência de Obras Públicas (SOP), do governo do estado do Ceará, e o executor contratado é a Construtora Luiz Costa (CLC). O valor da obra é de R$ 9.357.593,50 de acordo com a página Ceará Transparente .
“Enquanto a renovação da licença permanecer em análise pela DICOP a empresa não deverá executar nenhuma obra no local. Considerando que não há nenhuma denúncia registrada nos sistemas da Semace sobre a continuidade da obra sem licença válida, presume-se que a obra em questão esteja paralisada aguardando posicionamento conclusivo da Semace”, explica em nota enviada ao ((o))eco a assessoria da Semace.
Apesar do que afirma a Semace, a presidente da ONG cearense Verdeluz, Liana Queiroz, alerta que ainda há movimentações no local. “A gente tem acompanhado que as obras aparentemente continuam de alguma forma, seja deixando areia próxima, seja em outra parte da obra, e isso trouxe muita insegurança para gente de que esses embargos não estejam sendo cumpridos. Por isso a gente já notificou o Ministério Público [Estadual] e oficiou também a Secretaria do Meio Ambiente [SEMA], órgão responsável pela APA do Rio Pacoti e que deu anuência para as obras”, conta Liana, que através da Verdeluz, ocupa uma das cadeiras do Conselho Gestor da APA do Rio Pacoti.
A organização está em contato com a SEMA para marcar uma reunião e pressionar para que a obra siga suspensa até que todos os estudos de proteção do peixe das nuvens sejam concluídos.
De acordo com o embargo lavrado pelo Ibama para obra de ampliação da rodovia, “recomenda-se a manutenção da medida cautelar até apresentação de estudo que comprove a inexistência de dano provocado pela obra à espécie ameaçada”.
“A rodovia em obras possui o sentido sudeste-noroeste, enquanto o rio Pacoti possui orientação sul-norte, dessa forma as obras de terraplenagem para elevação do leito da rodovia podem aterrar os lagos temporários onde vivem a espécie ameaçada Hypsolebias longignatus, além de alterar a hidrodinâmica local, uma vez que pode ocorrer alteração nos canais naturais de drenagem pluvial que abastecem as lagoas onde habitam os rivulídeos”, descreve o laudo de fiscalização do Ibama.
O movimento em defesa dos rivulídeos tem o apoio político do vereador do município de Fortaleza, Gabriel Aguiar (PSOL-CE), biólogo de formação. O vereador foi ao local do aterramento e registrou, em vídeo, o solo ainda seco do fundo da lagoa temporária onde estão os ovos que garantem o futuro da Hypsolebias longignatus. “Aqui atrás de mim, vocês veem as obras, o paredão que já tem de barro, só esperando a obra ser desembargada para ser empurrado com maquinário e soterrar toda essa lagoa temporária”, alerta Gabriel no vídeo, divulgado em suas redes sociais .
O vereador explica que já foram enviados ofícios à SEMA, Semace, ao Ibama e ao Ministério Público do Estado do Ceará, nos quais também solicita que os embargos sejam mantidos até que os estudos científicos a respeito da distribuição da espécie e dos impactos ambientais da obra para a sua manutenção sejam concluídos.
“É bastante entristecedor. Parte muito significativa da lagoa temporária já foi aterrada antes do embargo da obra. Não ocorreram os estudos necessários antes da obra, um erro muito grave. É assim que perdemos para a extinção as nossas espécies mais raras, muitas vezes sem nem conhecê-las. Nós ainda desconhecemos muito da fauna do nosso Ceará e encontramos espécies novas o tempo inteiro. Mais estudos são fundamentais. Em unidades de conservação, como a APA do Rio Pacoti, deveríamos ver uma sensibilidade especial dos órgãos públicos para a conservação, mas isso raramente ocorre. Ainda temos muito a aprender e a atualizar na nossa gestão ambiental”, reforça ao ((o))eco o vereador cearense.
Além da duplicação da rodovia, no local há placas de outros dois empreendimentos, encabeçados por particulares, que ameaçam a região de ocorrência do Hypsolebias longignatus, e que também foram embargados pelo Ibama.
Uma das placas das obras — cuja atividades descritas são terraplanagem, transplantio de carnaúbas e supressão vegetal — indica como responsável a pessoa física Tania Marques Câmara “e outros”. A mesma, entretanto, em resposta ao embargo e notificação do Ibama, esclareceu que “não é possuidora do imóvel há mais de dez anos, sendo de seu total desconhecimento qualquer obra de construção civil em andamento, haja vista compra e venda ocorrida há mais de uma década”. Ainda de acordo com ela, “a obra em questão não é particular, mas trata-se, outrossim, de obra movida pelo Estado do Ceará através da Superintendência de Obras Públicas (SOP-CE)”.
A outra indica uma obra de responsabilidade da Dupla Representações LTDA que realiza a terraplanagem, conforme apurou ((o))eco, para construção de um shopping center. A área de aterro do empreendimento é de 52.160,53m³ ou 5,21 hectares. De acordo com informações do parecer técnico da Prefeitura Municipal de Aquiraz, elaborado em 2020, o aterro “é essencial para a transformação do ambiente em questão, de área alagada para área apropriada para a construção do shopping center”. Segundo o zoneamento do município, o local faz parte da Área Urbana de Expansão Controlada.
A prefeitura, através da Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo, Desenvolvimento Agrário e Recursos Hídricos, concedeu parecer favorável à Licença Prévia do empreendimento, com uma única ressalva feita sobre as carnaúbas (árvores nativas protegidas por decreto estadual), nem uma única palavra sobre o peixe das nuvens. A própria SEMA-CE, órgão gestor da APA do Rio Pacoti, emitiu autorização ambiental para o empreendimento, sem menção ao peixe.
Com o embargo, a empresa encomendou, às pressas, um Estudo Ambiental sobre o Hypsolebias longignatus, recebido pelo Ibama 16 dias após a paralisação das obras. O documento levanta os dados de ocorrência do peixe das nuvens e conclui que “a espécie alvo, Hypsolebias longignatus ocorre imediatamente às margens da CE-040 do lado oposto ao terreno objeto desse estudo, inserido na APA do Rio Pacoti, recomenda-se que a área seja objeto de busca ativa de ovos de H. longignatus, assim como indivíduos juvenis e adultos a depender da sazonalidade, considerando serem peixes anuais. Não se sabe ao certo se a espécie ainda ocorre no local, visto que foi captura apenas uma única vez em 2008 e nunca mais foi novamente encontrada. Isso pode ser reflexo do esforço de captura, uma vez que a região parece não ser contemplada com levantamentos recentes da ictiodiversidade, como já mostrado anteriormente. Assim sendo, sugere-se aqui o princípio da precaução já bem consolidado na jurisprudência do direito ambiental, considerando que uma vez que a espécie possa ainda estar presente no local, ela é ameaçada pela provável redução de habitat”.
((o))eco obteve acesso aos documentos de embargo das três obras junto à Superintendência do Ibama no Ceará. Os autos de embargo solicitaram aos responsáveis que apresentem dados como: registro de imóvel, memorial descritivo, licenças ambientais e autorização para supressão vegetal.
Licenciamento ambiental falho
Representante da ONG Verdeluz no Conselho Gestor da APA do Rio Pacoti, Liana Queiroz ressalta que este caso é sintoma de uma estrutura deficiente por trás da emissão de licenças ambientais. “Em todos os empreendimentos, de forma geral, as licenças ambientais se baseiam em estudos ambientais muito falhos e simplificados, que não fazem o levantamento dos dados completos, não garantem a proteção ambiental nem as medidas de mitigação efetivas. E esses estudos acabam sendo aprovados, mesmo com todas as falhas, nos órgãos ambientais. Isso é um problema recorrente em todas as obras que passam pelo Conselho Gestor da APA do Rio Pacoti”, lamenta.
“Isso é uma violação muito grande, porque essas áreas são unidades de conservação não são à toa. Elas foram escolhidas para serem unidades de conservação justamente porque são áreas de relevância ambiental, que prestam serviços ecossistêmicos a toda cidade e que, na grande maioria das vezes, abrigam espécies ameaçadas de extinção, como é o caso do peixe das nuvens. Todo e qualquer licenciamento ambiental em unidade de conservação deve ser ainda mais criterioso porque trata de áreas com grande relevância ambiental”, aponta.
Liana conta que ainda não integrava o Conselho Gestor quando o projeto do empreendimento foi discutido e que ainda não conseguiu acesso aos estudos ambientais que embasaram o licenciamento, ainda que os documentos, parte obrigatória do rito de licenciamento ambiental, sejam de natureza pública. “Estamos tentando primeiro ter acesso a esses estudos também para ajudar tecnicamente em formas de adaptar a obra ou até, de repente, a não realização da obra, caso a gente entenda que a extinção da espécie seria iminente”.
Na página da Semace, há um arquivo onde estão listados os Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), mas não há referência a nenhuma das três obras atualmente embargadas do entorno da APA do Rio Pacoti.
À espera da chuva
Qualquer levantamento agora sobre o status de conservação do Hypsolebias longignatus, precisa esperar as chuvas – que já estão começando na região do litoral do Ceará. É com a formação das lagoas temporárias que os ovos dos peixes das nuvens eclodem, e eles dão início ao seu rápido ciclo de desenvolvimento e povoam as águas de vida breve.
De acordo com o biólogo Telton Ramos, um dos objetivos dos estudos será entender se a espécie realmente ocorre apenas naquela única lagoa. “Se ela ocorrer em outras lagoas ao redor, podemos pegar um casal, temos a possibilidade de levar para reprodução em cativeiro ou mesmo movê-los para outra lagoa. Então queremos fazer esses estudos, que era para eles terem feito anteriormente, o que já teria identificado a ocorrência da espécie e impedido a obra, já que é uma espécie vulnerável à extinção”, explica.
O caráter sazonal de sua existência, durante o qual desaparece nos períodos de seca, torna os peixes das nuvens ainda mais invisibilizados nos estudos de impacto ambiental. “Se não forem feitos da forma adequada, na época adequada, essa espécie pode passar despercebida. O que não justifica porque o levantamento bibliográfico também garante a ocorrência da espécie e um levantamento bibliográfico bem feito, a partir de especialistas capacitados, teria plena condição de perceber que ali é área de ocorrência”, reforça Liana Queiroz.
“Tem peixes inclusive que ocorrem apenas em algumas poças. Então ele fica muito mais suscetível aos empreendimentos que aterram a sua área de vida e isso faz com que uma espécie possa desaparecer para sempre e desencadeia um desequilíbrio ecológico na região”, resume a presidente da ONG Verdeluz.
A vida curta do Hypsolebias longignatus, não o impede de ter uma existência bela e colorida. Os machos apresentam nadadeira anal azul clara, com manchas negras na parte anterior da nadadeira dorsal e séries transversais de pequenas manchas azuis na nadadeira caudal. O peixe das nuvens foi descrito formalmente pela ciência apenas em 2008, pelo pesquisador Wilson Costa, que na época o batizou como Simpsonichthys longignatus. Posteriormente, a espécie foi renomeada com sua inclusão no gênero Hypsolebias — que antes era considerado um subgênero.
No Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, volume 6 — Peixes (ICMBio, 2018), onde o Hypsolebias longignatus é classificado como vulnerável à extinção devido ao habitat restrito, recomenda-se transformar a área de ocorrência do peixe das nuvens em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) e realizar ações de educação ambiental com os proprietários da região.
O texto cita ainda que “é fundamental que seja exigido um levantamento específico de peixes anuais em projetos de licenciamento para obras que causem impactos ambientais”.
A família dos rivulídeos corresponde ao grupo de peixes continentais mais ameaçados do Brasil, com 125 espécies na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção.
Histórico de autuações
A realização das obras na rodovia possui um histórico de infrações ambientais. Em julho de 2020, o Departamento Estadual de Rodovias recebeu três multas que somaram R$16.000,00. Por desmatamento irregular tanto dentro quanto fora da Área de Preservação Permanente (APP) do Rio Pacoti e pelo descumprimento de uma condicionante da licença de instalação, que previa que as obras só poderiam ter início após a apresentação da Autorização para Supressão Vegetal. Na ocasião, a obra também foi embargada pela Semace, mas em outubro de 2020, com a emissão da Autorização de Exploração, foi permitida a supressão de vegetação e o embargo foi retirado.
“Após o julgamento administrativo das sanções aplicadas, os valores das multas poderão ser dobrados tendo em vista que atingem unidade de conservação”, explica a Semace em nota.
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O post “Ampliação de rodovia pode extinguir peixe endêmico do Ceará” foi publicado em 4th February 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco