No livro “Um mapa da Ideologia no Antropoceno ”, (Estação das Letras e Cores), o pesquisador e escritor Vinícius Prates nos aterra nesta nova era geológica para analisar as três principais ideologias ecologistas, estabelecendo a relação de cada uma delas com o ativismo, as políticas públicas e ações de cooperação internacional quando o tema é a crise do meio ambiente.
Percorrendo-se a análise dos ecologismos profundo, reformista e radical, é possível acessar territórios ideológicos bem demarcados e reconhecíveis, em uma elucidação das diferenças de anseios e interesses presentes no tabuleiro do discurso ambiental. A publicação é resultado da pesquisa desenvolvida por Prates durante aproximadamente duas décadas – ele dedicou a ela seu mestrado na Universidade Metodista de São Paulo e seu doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Embora estejam presentes correntes com afiados pontos de divergência, o mapeamento proposto pelo livro não se consolida na defesa ou na fricção direta entre elas. Fica estabelecido que se trata, sim, de uma disputa narrativa. Leva vantagem nesta disputa a tão incensada Sustentabilidade, conforme proposta pelas grandes corporações. Justamente a materialização dos preceitos da ideologia reformista, a mais alinhada com o capital-liberalismo. “Precisamos descolar o ambientalismo da Sustentabilidade, porque para muitas pessoas eles são equivalentes. Existem outras formas de ser ambientalista, outras visões e possibilidades”, pontua o pesquisador.
Uma nova era?
Ainda segundo Prates, o Antropoceno já encontra certa aceitação nos meios científicos, mas ainda pode ser considerado em seu momento embrionário. O termo não está oficializado a ponto de constar, por exemplo, nos livros didáticos. O que se aprende oficialmente na escola ainda nos coloca na era geológica do Holoceno, que nos últimos 10 mil anos tem oferecido as condições que possibilitaram a evolução da chamada civilização humana. Dessa perspectiva, o planeta é assumido como um ente vivo que dita suas regras, apreendidas em milhões de anos de adaptações subsequentes, as quais nós ainda seguimos sujeitos, mesmo agindo de forma sistematicamente predatória.
Já se considerarmos estar na era geológica do Antropoceno, no centro das transformações terrestres estão os seres humanos. Já não seria possível ignorar, sobretudo após a Revolução Industrial e diante de tantas alterações provocadas aos sistemas vivos pela coletividade de nossa espécie, que subjetividades, discursos e ideologias passem a ditar sobre a natureza as suas regras, promovendo danos irreversíveis. Ou, em citação do sociólogo Bruno Latour, a natureza passe a ser vivenciada como um fenômeno híbrido, “ao mesmo tempo real, social e narrada”.
Compreendida em maior ou menor medida, a proximidade da catástrofe é vivenciada como familiar nessa era, marcada por um sistema de produção e consumo que torna a manutenção da vida evidentemente instável e fragilizada. Nossa atuação, ao ganhar a dimensão geológica, promove uma ruptura na narrativa planetária – e, na mesma medida, faz soar um sinal de alerta.
Vinícius Prates mostra-se instigado por esse alerta, diante do qual são convocadas as habilidades para criar novos enunciados e imaginários, a partir da compreensão das ideologias ecológicas em operação no contemporâneo. Na entrevista que segue, ele explica por que mapear ideologias presentes no campo ambiental nos ajuda a compreender as motivações de agentes como instituições governamentais, empresas e ONGs diante da crise. E como, quem sabe, podem nos mobilizar a imaginar alternativas verdadeiramente novas.
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((o))eco – Como a análise do discurso pode nos ajudar a elucidar a intrincada narrativa contemporânea sobre a crise ambiental?
Vinícius Prates – Em primeiro lugar, acho importante realizar uma distinção: o discurso em meu trabalho não é entendido como uma entidade externa que descreve o real, ele é parte do real. Em uma visão psicanalítica, é possível afirmar até que o sujeito só existe no discurso. Assim como a ideologia, em sua concepção mais profunda, ele diz respeito às verdades e poderes que nos atravessam – e, principalmente, nos estruturam.
O campo ambiental segue possibilitando a disputa entre diferentes narrativas, funcionando, a seu modo, dentro de uma dinâmica democrática. Reconhecendo a importância dessa diversidade, eu busquei tratar cada ecologismo sem trazer a minha visão crítica pessoal. Pensei que o ideal seria aprofundar em cada ideologia de forma a que seus os defensores e praticantes pudessem se sentir representados.
Compreender a construção discursiva desses pensamentos nos oferece pistas preciosas de quais são as motivações que estão regendo, por exemplo, instituições e governos. É um caminho, ainda, para que se questione sobre outras possibilidades, os outros imaginários possíveis. Acho muito perigoso focarmos apenas no aspecto destrutivo e sombrio da narrativa ambiental contemporânea, que nos leva a constantemente sermos confrontados com sinais de um fim trágico e inevitável. Quanto mais tristes nos tornarmos, mais estaremos oferecendo água para os moinhos ideológicos que atuam contra a vida.
O presidente Jair Bolsonaro concentra considerável parte de suas críticas à atuação das ONGs (Organizações Não Governamentais). Essas organizações refletem, segundo o livro, o ecologismo profundo, com seu cultivar de sentimentos de respeito, sacralidade e admiração pela natureza. Podemos considerar essa postura do presidente um ataque direto a essa ideologia?
O discurso do presidente não pode chegar sequer a ser considerado dentro do campo ambiental. Ao contrário, sua postura poderia ser denominada como anti-ecologista, deliberadamente a serviço dos mecanismos de morte presentes no capital-liberalismo.
O ecologismo profundo é realmente o primeiro e tem sua pedra fundamental na figura do americano John Muir com o movimento Sierra Club criado ainda no final do século 19 e sua luta pela criação de parques para preservação nos Estados Unidos, com destaque para o Parque Nacional de Yosemite. Ele foi o pioneiro ao estabelecer um sentido ao mesmo tempo ético e político para sua atuação, que incluía viagens a diferentes locais do globo e à produção de textos ecológicos, pautado então em uma espécie de relação mística com os ambientes naturais. Assim, lutou pela preservação a partir da concepção da natureza como sagrada, uma dimensão que emana beleza e harmonia para nosso benefício e que merece, portanto, permanecer o máximo intocada.
No livro, eu trago a influência do Romantismo alemão e sua contestação da racionalidade iluminista para esse ecologismo. O Romantismo conclamou a importância do que nos toca na esfera dos sentidos, de forma sutil e muitas vezes indescritível. A arte, as paixões, as forças inconscientes fazem parte desse conjunto de experiências. A mesma força motriz pode ser encontrada nos hippies e no movimento da contracultura nas décadas de 1960 e 1970, não por acaso período marcado pelo avanço das pautas ambientalistas em todo o mundo. Esse sentido de amar a natureza, sentir-se filiado a ela, marca o ecologismo profundo e os primeiros movimentos ambientais estruturados a partir da segunda metade do século vinte.
As ONGs ambientais também trazem em seu cerne essa ideologia. Mesmo com estratégias diversas, organizações de diferentes proporções seguem realizando um trabalho que entende como inalienável que os biomas e as espécies continuem a existir, já que têm valor por si. Os afetos envolvidos diferem, por exemplo, daqueles que concebem esses mesmos territórios apenas como fontes de recursos a serem exploradas de acordo com as necessidades humanas.
Faz sentido, portanto, que ao criticar constantemente as ONGs, o presidente Jair Bolsonaro esteja também tentando invalidar uma das forças do discurso ambiental – justamente a que consegue mobilizar milhões de pessoas ao redor de iniciativas que divergem completamente do anti-ecologismo praticado pelo governo.
Já no tempo de John Muir, porém, se inicia também o ecologismo reformista, que entende o uso dos recursos naturais como negociáveis – o que chegou a levar à construção de uma barragem em Yosemite em 1903.
Exatamente. John Muir era uma figura mítica, que caminhava pela natureza com sua barba comprida, fazendo poesia. Seu opositor [o chefe da Divisão Florestal dos Estados Unidos, Gifford Pinchot] defendia a construção de uma barragem que ajudaria a solucionar o problema de abastecimento de água na Califórnia. A barragem foi proposta em 1901 e construída em 1903. Aqui percebemos essa ideia de negociação na busca por um consenso capaz de conceber que, em alguns casos, será necessário degradar a natureza – ou utilizar seus recursos – em nome de interesses considerados mais adultos, como o desenvolvimento econômico e social.
O capital-liberalismo está na estrutura do ecologismo reformista. Assim, para que o mundo continue a existir no sistema no qual estamos inseridos, é necessário criar mecanismos que mitiguem os danos desse modo de produção e consumo, entendendo-o como solidamente estabelecido. Afinal, como diz uma citação famosa do filósofo esloveno Slavoj Zizek, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Assim, em busca desse ideal de negociação – uma espécie de tamponamento – a pauta ambiental passou ter importância para as empresas, levando à criação do chamado terceiro setor empresarial, braço corporativo voltado a manter uma relação equilibrada e responsável com a comunidade e o meio ambiente. Para assumirem-se sustentáveis e alinhadas com preceitos ambientais que as tornam mais valiosas para o mercado, essas empresas buscam estabelecer práticas pautadas na eficiência. O planeta é importante mas o lucro também, já que a economia é parte inerente do mundo como o conhecemos. Essa lógica da eficiência também está presente nos grandes órgãos reguladores em toda a cadeia produtiva que visa ser ambientalmente sustentável.
Claro que existem zonas cinzentas do ponto de vista ideológico: os ribeirinhos quando estão fazendo a extração de um produto na floresta, embora inseridos da lógica capital-liberalista, estabelecem uma relação com o ambiente que difere completamente da realizada por uma grande corporação que chega para construir um empreendimento no meio da mata.
De modo mais amplo, porém, os enunciados dos ecologistas reformistas visam afastar o colapso total, preconizado aqui principalmente pela pauta do aquecimento global e das mudanças climáticas.
Por que o aquecimento global tem tanto destaque para os ecologistas reformistas?
Não há dúvidas de que a questão do aquecimento global é urgente, importante e altamente relevante. Mas com certeza não é a única, como às vezes pode parecer. O que ocorre é que esta é a temática que tem a capacidade de ser tão estrondosa quanto as grandes corporações e instituições governamentais, incluindo a ONU (Organização das Nações Unidas).
Ela também tem eloquência, nos une globalmente e ao mesmo tempo pode ser tratada de forma sistemática e racional, com iniciativas que seguem no intuito de diminuir as emissões nocivas para a manutenção da temperatura do planeta. A tecnologia, na perspectiva do ecologismo reformista, tende a se aprimorar de forma a permitir que possamos manter o nosso atual modo de vida, causando menos danos ao meio ambiente, com a continuidade das empresas e do mercado. Trata-se da busca do equilíbrio possível a partir do que temos hoje.
Essa ideologia é a que conta com maior força quando analisamos os discursos sobre a crise ambiental. A defesa dessa conciliação sonhada entre capitalismo e ambientalismo, porém, encontra seu entrave no próprio sistema: não é possível que todos os seres humanos adultos realizem o desejo de ter o carro dos sonhos porque para isso acontecer seria necessário destruir o planeta, para dar um exemplo. E é o mesmo se o carro for elétrico.
Para os ecologistas reformistas os ecologistas profundos podem ser vistos como imaturos, “eco-chatos” ou ingênuos “abraçadores de árvores”. Já para os ecologistas radicais, a negociação entre ambientalismo e capitalismo proposta pelos reformistas é impossível.
E de que forma os ecologistas radicais contribuem para o tabuleiro do discurso ambiental?
Aqui encontram-se mais pulsantes os novos imaginários uma vez que, para os ecologistas radicais, o caminho está em transformar o próprio sistema capitalista. A causa ambiental reveste-se de completamente de seu viés político. Na luta contra significantes como “capitalismo” e “neoliberalismo”, abarca a hibridez das vozes das chamadas classes oprimidas – em direta alusão a Marx – e, em sua amplitude, traz movimentos como o anarcoecologismo e o ecofeminismo.
Apenas essa confrontação direta, a quebra do sistema vigente, nos permitirão, para os radicais, traçar verdadeiros novos rumos que nos livrem do destino que nos anuncia o Antropoceno. E o trabalho está justamente em atuar nos imaginários de modo a superar a hegemonia estrutural do capital-liberalismo – ou capital-patriarcado, para as ecofeministas.
Para isso, seria necessário imaginarmos sistemas fora da lógica da exploração. Os ecologistas radicais apontam para novos arranjos sociais possíveis e modos de vida que não se estabeleçam a partir da degradação, na direção de um sistema efetivamente novo, mais justo e igualitário.
Como já foi dito, de fato, o capital-liberalismo tem sobre si a cruz da morte, simplesmente porque é, como sabemos, trata-se de um sistema de produção e consumo predatório para o planeta. A dificuldade dos ecologistas radicais está em engendrar as estratégias para que seja, de fato, o campo ambiental a angariar forças políticas capazes de nos trazer transformações estruturais mais profundas.
Depois de tantos anos de estudos, como você sugere que lidemos com esse atravessamento de discursos e ideologias?
Eu sou professor, no Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde ministro dentre outras a disciplina Jornalismo Científico, Meio Ambiente e Sustentabilidade. E confesso que sempre tomei cuidado para não trazer o peso da catástrofe. Precisamos estar conscientes, é claro, mas pessoalmente eu sinto que pode estar chegando o momento de resgatarmos uma relação de mais estesia com a natureza, nos passos dos ecologistas profundos.
Acredito que seja a hora de começarmos a colocar mais o peito, as emoções, e não apenas a cabeça e sua racionalidade na reflexão sobre essas questões. Validar os sentidos para que sejam capazes de trazer novas fagulhas para o nosso imaginário, que iluminem a nossa relação com o planeta. Essa é, afinal, a luta mais importante dos nossos tempos.
Mas também acho importante manter em mente algo que detalho no livro, sobre o que seria o dinheiro a partir de uma visão ambiental, no Antropoceno. O que concluo, em síntese, é que se trata-se do recurso que vai determinar quais as consequências da ação predatória do homem no planeta serão vivenciadas: a do luxo e do acesso a produtos e bens, ou da pobreza e degradação, em territórios que recebem o lixo que sustenta esse modo de vida.
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O post “Livro mapeia ideologias ecológicas no Antropoceno” foi publicado em 25th January 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco