Imagine-se sem o que conhecemos como o mundo natural. Isso mesmo! Feche os olhos e pense somente em pessoas. Difícil, não é? Somos natureza e nos relacionamos de forma ímpar com o ambiente natural. Nosso envolvimento ocorre a partir da construção de conhecimento, sentimentos, valores, experiências e crenças. Quando buscamos entender como interagimos com a natureza, estamos nos conhecendo e construindo soluções para questões humanas existenciais, entre as quais os conflitos socioambientais.
As Dimensões Humanas da Natureza (DHN) se referem às relações que as pessoas estabelecem com o ambiente e entre si (em função do ambiente), e inclui diferentes esferas de análise (Figura 1). Apesar de ser um campo relativamente novo como ciência, sua existência, quando vista pelo olhar unicamente das relações, é tão antiga quanto a do próprio ser humano, quando a natureza, com sua grandeza e seus mistérios, evocava rituais, adorações, pavor e ânsia por conhecer. Mesmo com todas as mudanças advindas, ela, a natureza, não deixa de causar reações, ainda que diferentes por conta da heterogeneidade dos povos e das especificidades culturais e individuais. Ou seja, independente de estarmos falando de um residente da floresta, da cidade, ou do campo, o fato é que essa relação com o mundo natural comporta diversos elementos, condizentes com a esfera plural e multifacetada que compõem a existência humana.
“Lá onde se encontra a árvore do conhecimento é sempre o paraíso’: assim falam as mais velhas e as mais jovens serpentes”, escreveu Friedrich Nietzsche, em 1886, em sua obra “Além do bem e do mal”. Nessa obra ele critica a filosofia, a religião e a moral; indica as congruências entre as três e aponta a psicologia como a única ciência capaz de jogar a âncora dessa análise mais a fundo.
Além do bem e do mal… Sim, trata-se de ir além de uma visão reducionista, ao considerar todos os aspectos inerentes aos humanos (entenda-se o indivíduo, grupos ou sociedades), com a ambivalência e a complexidade que determinam seus comportamentos concernentes à natureza, e que podem ser acessados à la Nietzsche: são trazidas as teorias e metodologias de várias disciplinas, e de forma sistemática e crítica (não julgadora, crítica), para dissecar não só o conhecimento, mas as intenções e os comportamentos humanos.
Por ora, no entanto, ficaremos no hall de entrada dessa mansão em construção dinâmica e adaptável a cada contexto. Tal construção depende das habilidades de diferentes profissionais e do uso de diferentes materiais, necessários para compreender a estrutura dos pilares que sustentam essas relações entre as pessoas e o ambiente.
Mas por que fazer isso? Qual a relevância de investigar comportamentos humanos (individuais ou coletivos), suas origens e seus impactos? O campo das DHN trata de analisar a relação direta entre gente e ambiente, ou entre diferentes grupos em relação à fauna, terra, ar e mar, considerando contextos políticos, sociais e econômicos com o intuito de fornecer informações a gestores, tomadores de decisões e demais profissionais que atuam no manejo e conservação da biodiversidade. Embora muitas vezes pareça centrado nas questões ligadas às interações das pessoas com a fauna silvestre (devido ao seu histórico), é um campo bastante abrangente e com potencial para explorar diversos tópicos, como por exemplo, o acesso, o uso e a distribuição dos recursos naturais; a coexistência humano-fauna em ambientes urbanos ou rurais; dentre outros. Aqui reconhecemos as Dimensões Humanas da Vida Silvestre, e as Dimensões Humanas dos Recursos Naturais. No entanto, expandimos a visão da natureza para além do ‘recurso’ e assim introduzimos as DHN.
Tais interações entre gente e ambiente, no entanto, são complexas. Quem não tem medo de alguns animais, ou admiração por outros? Prazer em estar na praia, no mar, no rio ou numa montanha? Ou por alguma razão inexplicável se recusa a entrar na água? Esta diversidade de reações é natural e intrínseca ao ser humano. Sentimentos e emoções como esses orientam muitas das ações em relação à natureza, e, portanto, é crucial que sejam considerados por projetos ou programas voltados à conservação, ao manejo de um recurso ou à prevenção e gestão de conflitos.
Entende-se, dessa forma, que no cerne de decisões tomadas em nível individual, social, político ou econômico, para além do conhecimento empírico, estão envolvidos valores, normas sociais, sentimentos, emoções, expectativas e comportamentos. Assim, diferentes áreas do conhecimento, como a ética, a sociologia e a psicologia, orientam muitas das análises das DHN com seus conhecimentos e estudos. Buscar compreender essa dinâmica das interações das pessoas com a natureza é o objetivo do nosso grupo, Dimensões Humanas da Natureza, que surgiu em meados de 2018 e inicia hoje essa coluna mensal.
Por tratar-se de um campo do conhecimento que vai além de um olhar onde os elementos físicos se tornam um ‘recurso natural’, expandimos aqui essa análise para abranger o intrínseco, o intangível, o não monetizado ou entendido como recurso. Usaremos esse espaço para trazer as diferentes esferas das DHN em múltiplos contextos e relações com animais, ambientes e suas interlocuções com temas contemporâneos.
Convidamos você a acompanhar nossa coluna, divulgá-la e refletir sobre esse tema tão fundamental para a construção e viabilização de novas relações humanas com a natureza.
Obrigada por ler as Dimensões Humanas da Natureza.
As autoras (ordem alfabética):
Ana C. Pont , bióloga, educadora socioambiental e estudante de Dimensões Humanas da Natureza.
Ana Pérola Drulla Brandão , médica-veterinária, epidemiologista, pesquisadora na Faculdade de Medicina da USP e divulgadora científica no Portal Saúde Única.
Cláudia Sofia G. Martins , engenheira agrônoma, ecóloga e pesquisadora de Dimensões Humanas dos conflitos socioambientais em ambientes semiáridos.
Flávia de Campos Martins , bióloga, ecóloga e educadora, interessada nas Dimensões Humanas das relações com as aves do semiárido e com ecossistemas aquáticos.
Francine Schulz , bióloga, especialista em Perícia Auditoria e Gestão Ambiental, mestre em Engenharia Civil – Gestão de Resíduos.
Iara Ramos , amazônida, bióloga e doutoranda em Ecologia pela Universidade Federal do Pará.
Maria Augusta Guimarães , psicóloga, mestranda em Ecologia Aplicada, membro do Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação de Fauna Silvestre (LEMaC / USP).
Mônica T. Engel , bióloga, consultora e pesquisadora em Dimensões Humanas.
Leia Também
Dentro da lei: Onça-parda é morta na Califórnia por abater animais domésticos
O post Para além do bem e do mal apareceu primeiro em ((o))eco .
Fonte
O post “Para além do bem e do mal” foi publicado em 24th January 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco