Nascida em Belém do Pará, a jornalista escritora Cristina Serra é autora do livro Tragédia em Mariana: A história do maior desastre ambiental do Brasil, cujo título é autoexplicativo. Ela se formou em Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF) e desde então segui uma carreira bem-sucedida. Trabalhou nos jornais Resistência, Tribuna da Imprensa, Leia Livros, Jornal do Brasil, e da revista Veja. Depois deixou os veículo para ingressar Rede Globo, na qual foi repórter de política em Brasília, correspondente em Nova York e comentarista do quadro “Meninas do Jô”, no Programa do Jô.
Em 2015, foi escalada para a cobertura do desastre em Mariana, pelo Fantástico e deu uma guinada na carreira, passando a se dedicar a estudar e escrever sobre questões ambientais.
Além da obra sobre o desastre de Mariana, escreveu também o livro Mata Atlântica e o mico-leão-dourado: Uma história de conservação. Atualmente é repórter freelancer de grandes veículos de imprensa nacional e é colunista da Folha de S. Paulo.
Nesta entrevista a O Eco, Cristina faz um balanço dos cinco anos, completados hoje, do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana.
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Hoje se completam cinco anos do desastre de Mariana. Como está a situação ambiental da região atingida? Há ainda marcas, sequelas?
Na última vez em que percorri a região, e vi com meus próprios olhos e conversei com as pessoas, foi em 2017. Eu fiz duas vezes o caminho da barragem até a foz do Rio Doce, uma quando ocorreu o desastre e outra logo após, em 2017, quando eu estava escrevendo o livro. A partir daí eu acompanho a distância e que eu sei é por meio de contatos com as pessoas de lá. Sei que tem uma rede de estudos que chama Rede Rio Doce Mar, que é formada por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que conduziram uma série de pesquisas, coletando, em 2019, amostras de sedimentos, animais, peixes, camarões, enfim, a fauna da região do rio, perto da foz. Eles constataram a presença de metais pesados na água, em sedimentos e em animais da fauna do rio do ambiente marinho. O relatório deles é bem atual, creio que de agosto de 2020. Alguns desses metais, inclusive, estão acima dos níveis permitidos pela legislação. É importante explicar uma coisa que é confuso, mas, desde o desastre há essa confusão e é importante a gente explicar isso.
Esses metais pesados vieram do material represado pela barragem?
Não. A lama de rejeito de minério de ferro que vazou do reservatório com o colapso da barragem é considerado um material estéril, sem metais pesados. Isso é verdade. O que acontece é o seguinte: quando essa quantidade absurda de lama que foi despejada ela caiu nos rios, em pequenos riachos, ribeirões, até chegar no Rio Doce, ela leva uma quantidade tamanha de lama, que essa lama revolve o leito dos rios da bacia do Rio Doce e a ele próprio. Esse revolvimento do leito desses rios promove um fenômeno chamado resuspensão de metais pesados depositados ali há mais de século. Na verdade, desde que começou o ciclo da mineração em Minas Gerais, que começa com o ciclo do ouro, no comecinho do século 18, e se 19, passa do ciclo do ouro para o minério de ferro e chegamos até aqui. Então todos esses metais pesados depositados, sedimentados, no leito desses rios, eles são revolvidos e resuspensos, e passam então a ser detectados na água. Eu estou explicando isso tudo porque a Fundação Renova bate muito nessa tecla de que o material da lama é estéril e não tem metais pesados. É verdade. Só que esse excesso, essa quantidade absurda de lama – cerca de 40 milhões de metros cúbicos – revolveu esses metais sedimentados ao longo dos séculos na bacia do Rio Doce. Esse é o aspecto da toxicidade detectada pelos pesquisadores e o outro é que a lama em si não é tóxica, mas pela quantidade que foi despejada na bacia se tornou um material tóxico, porque sufocou a fauna do rio, a terra, as margens, e a própria água.
Como estão os povoados atingidos?
Cinco anos depois do desastre, os três povoados que foram completamente destruídos – que são Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, que são dois distritos do munícipio de Mariana, e o povoado de Gesteira, que é do município de Barra Longa –, ainda não foram reconstruídos. Gesteira não foi completamente destruído porque é dividido em Gesteira de Baixo ou Gesteira Velha e Gesteira Nova, que não foi atingida.
Eu considero isso a maior prova da incapacidade das três mineradoras de repararem os danos que elas provocaram. Cinco anos depois os povoados não estarem reconstruídos. Nós não estamos falando de cidades grandes, nós estamos falando de povoados pequenos. Bento Rodrigues, que é o maior dos povoados, tinha cerca de 200 casas, pouco mais de 600 moradores, então eu não consigo encontrar uma explicação razoável para o fato de que duas das maiores mineradoras do mundo, que são a Vale e a BHP, que são as financiadoras da Fundação Renova, encarregada da reparação dos danos, não tenham sido capazes em cinco anos de reconstruir esse povoado e entregá-lo de volta aos moradores. Isso é a grande prova do fracasso dessa reparação em curso.
Como está a situação humana, a vida dos atingidos?
Essas pessoas que moravam nos povoados ainda não tiveram suas casas de volta. Elas moram hoje em casas alugadas pela Fundação Renova, no município de Mariana. Eles não tiverem suas casas de volta. Além disso, nem todas foram indenizadas. Os acordos de indenização são bem problemáticos, depende do dano de cada um. Quer dizer, os que perderam as casas a gente sabe que tem esse dano enorme, mas tem também aqueles que perderam emprego e os que perderam pessoas de sua família. Esses que tiveram perdas humanas, eu creio – não tenho esse levantamento ao certo – creio que esses já foram indenizados. O problema maior é a comprovação da perda de renda. Muita gente tinha empregos informais, então é muito difícil essa comprovação junto à Fundação Renova. E todas essas perdas somadas têm impacto na saúde das pessoas. Eu sei que embora não exista um estudo epidemiológico, sei, por relatos de pessoas com quem eu mantenho contato, fontes, vítimas, Ministério Público, de muitas pessoas que sofrem de inúmeros problemas. Tem uma incidência de depressão muito grande, tem problemas de pele e respiratórios. Já ouvi até relatos de problemas renais em populações ribeirinhas. Então existem impactos diversos. Mas o problema é que os relatos são esparsos, não tem um estudo que consolide isso. E aí eu volto mais uma vez pra incapacidade dessas empresas e dessa Fundação Renova de mensurar os danos, e eu acho que isso é proposital para dificultar as indenizações.
O que ocorreu foi um mero acidente ou resultado do descaso das empresas e do poder público?
Esse desastre de Mariana foi uma tragédia anunciada. No livro eu mostro isso muito bem, porque eu pude me dedicar a esmiuçar a história dessa barragem. O processo de licenciamento da barragem começou errado. Foi mal feito, foi atipicamente rápido. Os órgãos encarregados do processo de licenciamento foram extremamente lenientes com as exigências que a empresa tinha que cumprir, medidas que ela tinha que apresentar para poder ter seu projeto aprovado. Esse foi um aspecto. Depois, a construção da barragem teve muitos problemas. Isso está tudo documentado, a investigação mostrou isso com muita clareza. Problemas de drenagem já na sua construção, teve troca de material. O representante da empreiteira que construiu a barragem fala sobre isso em seu depoimento, que por sugestão da empresa Samarco usou material mais barato. E a operação da barragem também apresentou problemas. Não foi dada a devida importância às questões de segurança.
A investigação mostra também que a queda do preço do minério de ferro no cenário internacional teve um impacto também na operação da barragem. Para compensar essa queda, a empresa aumentou a produção. E isso implicou em um aumento na produção desse rejeito. Com isso, foi sobrecarregando a barragem. Então ela precisou subir muito rapidamente para dar conta de armazenar esse rejeito no reservatório. Além disso, alguns instrumentos de monitoramento da barragem quebraram e não foram substituídos, não foi feita a leitura de alguns instrumentos nos dias anteriores ao desastre. E tem também a questão do laudo de estabilidade da barragem, que é um problema sério que aconteceu também em Brumadinho, que foi apresentado um laudo para os órgãos de fiscalização, atestando a estabilidade da estrutura, quando na verdade essa estrutura já tinha problemas sérios.
Mas não havia fiscalização?
O modelo de fiscalização das barragens no Brasil é auto declaratório, e isso é um problema sério. E aí eu chego no segundo polo desse problema. É claro que o responsável principal é a empresa, mas os órgãos de fiscalização do poder público também não cumpriram seu papel de fiscalização. Eles não podem abrir mão de fazer visitas in loco para verificar os problemas. O poder público falhou gravemente nesse caso da barragem de Mariana.
Como agiram as empresas Vale e BHP em relação aos danos ambientais causados pelo desastre?
Foi criada essa Fundação Renova, que é quem responde por tudo. Pela reparação do meio ambiente, pelas compensações, pelas indenizações. Só que ela tem, na verdade, mostrado uma grande incapacidade de responder e de reparar todos esses danos que a gente conversou até agora. Danos sociais, econômicos, ambientais e sobretudo humanos.
E a situação jurídica, legal? Eles têm sido atendidos em suas demandas?
Sobre a situação jurídica há muitos pleitos não atendidos ainda. Agora, aconteceu um fenômeno recente que é muito importante falar. Existe uma ação tramitando na justiça do Reino Unido, porque a BHP é anglo-australiana. Então, como ela tem uma sede lá, um escritório do Reino Unido, que conta com advogados brasileiros, entrou com uma ação na justiça do Reino Unido representando 200 mil atingidos na Bacia do Rio Doce. Essa ação, na verdade, ainda não está tramitando, mas deve sair por esses dias um pronunciamento da justiça britânica para esclarecer, antes de mais nada, se o Reino Unido tem jurisdição para julgar a BHP no caso de um desastre ocorrido em outro país. Antes de mais nada, a justiça tem que responder a essa pergunta. Depois que esse processo começou a correr no Reino Unido, aconteceu um fenômeno interessante aqui na 12ª Vara Federal: é que alguns pedidos de atingidos começaram a tramitar rapidamente, com uma pressa que até então não se tinha visto e o Ministério Público Federal levanta suspeitas do que ele chama de lide simulada ou lide combinada.
Como isso funciona?
Essa lide seria combinada entre um escritório de advocacia recentemente constituído e as empresas, porque o juiz concordou com o pleito dos atingidos, mas estabelecendo uma condição muito esquisita: quem concordar em receber as indenizações terá que assinar um documento se comprometendo a desistir de qualquer reivindicação futura na justiça no Brasil e no exterior. Então, por exemplo, eu concordo. Eu vou receber uma indenização de 85 mil reais, que foi o valor fixado para uma lavadeira receber. Então eu recebo esses 85 mil e assino um termo de quitação para as empresas e a Fundação Renova dizendo “ok, recebi, estou satisfeita, e nunca mais vou entrar na justiça nem no Brasil nem no exterior”. Então, é muito curioso que isso tenha acontecido agora nos últimos meses e as empresas concordaram sem contestação à decisão do juiz, coisa que nunca acontece, elas sempre contestam, elas sempre recorrem. Isso tudo é para dizer como a situação jurídica enfrentada pelos atingidos, Além da tragédia física, do rompimento da barragem, da poluição e de todas as perdas materiais e humanas, muitos ainda enfrentam uma tragédia judicial, processual. Mesmo quando as pessoas conseguem receber as indenizações, dentro desses acordos, elas têm que abrir mão de futuras ações. Digamos que daqui um tempo eu descubra que tenho alguma doença provocada por intoxicação de metais. Teoricamente eu não vou poder entrar com outra queixa, porque eu assinei o termo de quitação, abrindo mão de qualquer ação futura. Então isso é completamente injusto.
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O post “Cristina Serra: A Vale e a BHP não conseguiram reparar os danos que elas provocaram” foi publicado em 5th November 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco