A extração seletiva de madeira é apontada há muito tempo como uma forma ambiental e ecologicamente favorável de coletar madeira, mas um novo estudo acrescenta evidências que sugerem que esse não é inteiramente o caso.
O estudo mostra que na floresta amazônica, as mesmas espécies de árvores usadas como locais de nidificação da harpia (Harpia harpyja) são quase todas visadas pela indústria comercial de madeira. Os autores dizem que as operações de extração de madeira na região podem estar causando uma degradação em grande escala do habitat de uma das maiores aves de rapina do mundo. A análise foi publicada na Biological Conservation .
“É realmente uma ameaça no momento”, diz o autor principal Everton Miranda, um biólogo brasileiro da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul.
As harpias costumavam ter sua distribuição do México ao norte da Argentina, mas seu habitat e população foram fortemente pressionados por anos de desmatamento e caça . A planície amazônica representa agora o que os autores chamam de “último reduto” para essas aves, onde acredita-se que estão 93% da população existente. Aves grandes são conhecidas por construírem seus ninhos em árvores altas emergentes que se erguem acima da copa da floresta, mas quais árvores exatas as harpias usam não estava claro antes.
Miranda e uma equipe de pesquisadores do Reino Unido e do Brasil reuniram todas as informações da literatura científica sobre ninhos de harpias e árvores nidificantes na América Latina, bem como estudos não publicados e notas coletadas de biólogos de aves de rapina da região. No total, eles encontraram informações sobre 98 ninhos, as estruturas das árvores e a vegetação circundante.
Eles descobriram que as harpias usam apenas 28 espécies de árvores como locais de nidificação, entre cerca de 10.000 espécies na Bacia Amazônica. Invariavelmente, as aves escolhem as árvores emergentes mais altas das redondezas, com estruturas específicas capazes de sustentar seus ninhos.
Os pesquisadores suspeitaram que essas mesmas árvores seriam procuradas como madeira por madeireiros legais e ilegais. Então, eles compararam as espécies de árvores com um índice de preços para a indústria madeireira comercial no estado do Pará, no norte do Brasil, um ponto crítico de extração de madeira que responde por cerca de metade de toda a madeira colhida na Amazônia brasileira . Das árvores usadas para nidificação, mais de 92% estavam na lista, sugerindo interesse comercial tanto por concessões legais de madeira quanto por madeireiros ilegais.
Corte seletivo
A extração seletiva de madeira é uma estratégia amplamente utilizada nas florestas tropicais. Em oposição ao corte raso de um pedaço inteiro de floresta, certas espécies de árvores comercializáveis são cortadas para produzir madeira e o resto é deixado em pé. A floresta pode então se recuperar, geralmente por duas ou três décadas, antes de ser cortada novamente.
Alguns estudos sugerem que florestas de produção de madeira bem manejadas podem manter níveis de biodiversidade comparáveis a florestas nativas ou protegidas. Muitos conservacionistas consideram que o modelo atinge um equilíbrio adequado entre os benefícios comerciais e a proteção ambiental.
Na Amazônia, as áreas exploradas são atualmente maiores do que as desmatadas, embora isso se deva tanto à extração legal quanto ilegal na região. “Esse é o lado ruim, que há uma enorme área que foi seletivamente explorada”, diz David Edwards, professor de ciência da conservação da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, que não esteve envolvido no estudo. “O lado bom é que você ainda tem uma floresta no final das contas porque é seletivo [o corte]”, diz ele.
Outra pesquisa mostrou que a extração seletiva frequentemente leva ao desmatamento da floresta de qualquer maneira: o estudo descobriu que 16% das áreas florestais seletivamente exploradas no Brasil foram desmatadas posteriormente dentro de um ano. Abrir o dossel também pode enfraquecer as árvores ao redor e secar a floresta abaixo, tornando-a mais suscetível ao fogo. Ele também perturba as populações de besouros de esterco, engenheiros-chave do ecossistema da Amazônia. E para espécies que dependem de árvores e arquitetura de árvores específicas, como a harpia, a extração seletiva de madeira pode representar um problema de conservação mais sério.
Árvores procuradas
A árvore de nidificação mais popular da harpia na Amazônia foi a Ceiba pentandra, ou sumaúma, que pode atingir 60 metros de altura. Sua madeira é usada para criar compensados e em construções leves, e sua fibra de semente é usada como isolamento ou enchimento de colchão . No Escudo das Guianas, as harpias faziam seus ninhos principalmente no poderoso Couratari guianensis [chamado popularmente de maú], cuja madeira é usada em carpintaria e pisos, e que foi classificada como espécie vulnerável em 1998 .
As harpias, aves formidáveis que crescem até 1 metro de comprimento, selecionam essas árvores por seu tamanho, estrutura e força. A altura dá ao predador de topo a melhor visão panorâmica para procurar presas e mantém seus filhotes longe de qualquer ameaça potencial. As harpias preferem árvores com copas mais largas e galhos em ângulos mais rasos. Elas oferecem espaço para os jovens aprenderem a voar e para os adultos pousarem, bem como espaço e apoio suficientes para construir o que está entre os maiores ninhos de aves existentes, medindo até 2,5 metros de largura.
“A estrutura que elas precisam é muito específica”, diz Miranda.
Além de fornecer lares adequados para as harpias, essas mega árvores são essencialmente ecossistemas inteiros em si mesmas. “Eles não só apresentam benefícios em termos de nidificação da harpia, mas geralmente são espécies que reúnem grande biodiversidade”, diz Miranda.
As harpias desempenham um papel fundamental nesses ecossistemas. Elas controlam a população de macacos-prego, por exemplo, que comem ovos de pássaros e podem até derrubar palmeiras enquanto comem o palmito em seu interior. A pesquisa sugere que as carcaças de presas largadas em torno das árvores por pássaros predadores podem funcionar inclusive para dispersar sementes.
Árvores emergentes desaparecendo?
É difícil saber exatamente quantas dessas árvores foram derrubadas na região, pois a extração ilegal de madeira é abundante e o monitoramento é difícil. Peru, Equador e Colômbia sofrem com os altos níveis de extração e exportação ilegal de madeira. A Polícia Federal do Estado do Amazonas, no Brasil, disse recentemente que mais de 90% da madeira que sai da Amazônia é de origem criminosa.
“Não temos boas estimativas de quanto da Amazônia foi explorado. Você tem extração ilegal de madeira essencialmente em todos os lugares ”, aponta Miranda.
Edwards diz que as descobertas destacam um potencial problema de conservação. No entanto, ele avisa que é difícil extrapolar os resultados para os efeitos nas populações de harpia.
“Sem andar por aí e realmente encontrar árvores-ninho, será difícil saber o impacto geral”, diz ele. A densidade populacional delas em uma determinada área é muito baixa, acrescenta, e elas provavelmente podem se mudar para outra emergente [árvore mais alta que as outras do dossel].
Ainda assim, no contexto de extração ilegal de madeira intensiva, diz Edwards, as descobertas são particularmente preocupantes. “Garantir que temos controle sobre isso é importante”, afirma ele.
“As diretrizes de manejo florestal sustentável não permitem a remoção de todas as árvores-mãe de uma determinada espécie em uma área de produção”, diz Saulo Souza, pesquisador associado de pós-doutorado da Universidade de Exeter, Reino Unido, que também não participou do estudo. “A retenção das árvores com sementes pode chegar a até 15%.”
Souza destaca o sucesso de uma lei que proíbe os madeireiros de derrubar castanheiras (Bertholletia excelsa), que, segundo ele, são frequentemente utilizadas por harpias. (As espécies deste gênero foram excluídas do estudo de Miranda).
“A melhor prática é selecionar com cuidado as árvores a serem colhidas e excluir as árvores com ninhos, principalmente de animais considerados oficialmente ameaçados de extinção”, diz Souza. A harpia não é considerada uma espécie ameaçada na Lista Vermelha da IUCN, embora os autores do estudo digam que a “extensa degradação do habitat” deve ser considerada na próxima avaliação.
Ainda assim, lacunas regulatórias estão permitindo que colheitas mais intensivas aconteçam, mostram pesquisas, e madeireiros ilegais estão encontrando maneiras de contornar as salvaguardas legais. Os volumes de árvores com valor comercial estão sendo artificialmente inflados nas licenças de madeira, por exemplo, permitindo que os criminosos lavem a madeira. Enquanto isso, a fiscalização foi reduzida no Brasil, onde o financiamento para o Ibama, a agência ambiental federal, foi cortado sob a administração do presidente Jair Bolsonaro.
“A motivação deste estudo para mim apenas enfatiza como [os conservacionistas] querem trabalhar com governos, governos regionais, com empresas madeireiras, para que sejam seguidas as melhores práticas e igualmente para reprimir duramente a extração ilegal de madeira”, diz Edwards.
“O problema trazido pelo artigo certamente é minimizado com um manejo florestal adequado”, acrescenta Souza. “E, claro, se a extração ilegal for banida”.
*Matéria originalmente publicada no Mongabay. Tradução: Duda Menegassi
Citações:
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