A decisão do Conama de revogar três de suas resoluções na última segunda-feira (28/09) acendeu o alerta entre ambientalistas e na sociedade civil sobre a fragilização da legislação ambiental. A validade da votação do Conselho foi suspensa no dia seguinte, em liminar expedida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, mas três dias depois, na sexta-feira (02/10), foi restabelecida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Enquanto o assunto ainda promete render reviravoltas nesse “vale ou não vale” das cortes judiciais, especialistas se mobilizam para explicar o que está em jogo. Em especial o fim da Resolução nº 303, que estabelece os parâmetros para as Áreas de Preservação Permanente, é visto como um grave risco às áreas de restingas e manguezais.
A questão gerou dúvidas já que essas áreas também são protegidas pela Lei da Mata Atlântica e pelo próprio Código Florestal. O próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usou essa narrativa de redundância jurídica para justificar a revogação da norma, que passaria a ser cumprida de acordo com critérios estabelecidos individualmente pelos estados.
Para esclarecer o que estabelece a Resolução nº 303/2002 do Conama e o que se perde com a sua revogação, em especial para os ecossistemas costeiros, ((o))eco conversou com a subprocuradora-geral da República, Sandra Cureau. Em 2013, Cureau foi responsável por assinar três das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) que questionavam pontos do Código Florestal, entre eles a própria definição de Área de Preservação Permanente (APP). Além disso, a subprocuradora atuou por 10 anos como Coordenadora da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que trata de assuntos de Meio Ambiente.
Na entrevista, Cureau esclarece que nem Código Florestal nem a Lei da Mata Atlântica são suficientes para garantir a proteção de restingas e manguezais já que, apesar de ambos os textos citarem a necessidade de se proteger esses ecossistemas costeiros, nenhum deles define como será feita essa proteção. “Essa proteção foi garantida pelas resoluções do Conama especificamente. E quando as resoluções caíram, a proteção caiu também. Manguezais e restingas estão desprotegidos”, alerta.
Leia a entrevista de ((o))eco com a subprocuradora na íntegra:
((o))eco: Há o Código Florestal e, sobre a maior parte do litoral, também vigora a Lei da Mata Atlântica. Especificamente sobre a proteção desses ambientes costeiros, as restingas e manguezais, como fica essa proteção se a revogação da resolução nº 303 do Conama for mantida?
Sandra Cureau: Eu vou tentar te explicar desde o começo o problema. Quando esse novo Código Florestal de 2012 entrou em vigor, fui eu que ingressei com as três Ações Diretas de Inconstitucionalidade [Adins], porque à época eu era substituta do procurador-geral. E as ações visavam justamente a inconstitucionalidade dos dispositivos do novo Código Florestal que flexibilizam a proteção dos ecossistemas (e aí entra inclusive a Mata Atlântica e todos os demais biomas), em relação ao Código Florestal anterior. Ou seja, esse novo Código Florestal tornou menos protegidas essas áreas litorâneas e outras tantas áreas. A proteção se tornou menor. E o Supremo confirmou a constitucionalidade do novo Código Florestal. As poucas coisas que o Supremo julgou inconstitucionais não mexeram nessas áreas das quais está se falando [restingas e manguezais], ao contrário do que a gente defendia. Nós achávamos que tinha muita coisa inconstitucional, tudo que, de alguma maneira, era retrocesso em matéria ambiental.
A partir daquela data — e isso já faz um tempinho — a gente começou a ficar preocupado com as resoluções do Conama baseadas na legislação anterior. Como são resoluções nós chamamos de lei lato sensu. Quer dizer, lei em sentido “largo”, não são leis em sentido estrito [stricto sensu] porque não são leis que provém do poder legislativo. As resoluções são baixadas pelo Conama. E a gente naquela época já começou a ficar preocupado com o que iria acontecer com todas as resoluções do Conama que de alguma maneira não estivessem expressamente amparadas pelo novo Código Florestal, que é o caso dessas que foram julgadas agora, na segunda-feira [28/09, data da reunião do Conama]. Ou seja, havia esse risco desde aquela época.
Do ponto de vista da proteção do meio ambiente é péssimo porque obviamente essa decisão do Conama visou abrir espaço para a carcinicultura [criação de camarão em viveiros]. Porque a proteção dos manguezais na resolução do Conama não possibilitava que se fizessem tanques para carcinicultura em áreas de manguezal. O manguezal é uma área muito importante porque é uma área que além de servir de abrigo para vários animais, também serve como alimento para várias espécies. E as restingas, que também entraram na dança, são protetoras de dunas, e de determinadas espécies da fauna e da flora também. E tudo isso ficou agora desprotegido. Muito provavelmente na parte das restingas, quem saiu ganhando com a derrubada da resolução foi a especulação imobiliária, porque não se podia construir nessas áreas, eram áreas protegidas. Agora pode. Do ponto de vista ambiental é uma catástrofe. Porque essas áreas não têm nenhuma proteção específica nem na Lei da Mata Atlântica nem no Código Florestal, essa proteção foi garantida pelas resoluções do Conama especificamente. E quando as resoluções caíram, a proteção caiu também.
Essa é a dúvida de muita gente, porque o Código Florestal especifica restingas e manguezais como ambientes a serem protegidos, mas não estabelece nenhum parâmetro para isso. Qual a leitura sobre essa proteção estabelecida no Código?
Cureau: Exatamente. Não estabelece porque as resoluções servem exatamente para estabelecer critérios, limites, até quantos quilômetros… É a resolução que vai especificar a forma de proteção. A resolução não é uma lei no sentido estrito, então ela não pode dizer que precisa ser protegido, quem diz isso é a lei. Já a lei diz o que tem que ser protegido, mas não diz como. Então é a resolução que entra nesses detalhes. E nesse caso, como a resolução caiu, não tem mais nenhum dispositivo legal – lato sensu ou stricto sensu – que diga o que é que tem que ser protegido em matéria de restinga ou em matéria de manguezal. Essas áreas, nesse momento, estão totalmente desprotegidas porque não há nada que delimite o tipo de proteção, como ele deve ser feito, quais são as áreas, etc.
E a Lei da Mata Atlântica também não faz isso?
Não, não faz. Nenhuma delas. As leis não entram nesses detalhes. Normalmente são decretos que regulamentam as leis e as resoluções do Conama também faziam esse papel, sempre fizeram, de entrar em detalhes em relação ao que as leis diziam de uma maneira ampla. Caindo as resoluções do Conama, manguezais e restingas estão desprotegidos.
A justificativa do ministro Ricardo Salles para votar essas revogações é de que elas sobrepunham o que já estava dito em leis superiores, como o próprio Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica.
Não é verdade. As leis dizem de uma forma ampla, dizem que restingas e manguezais devem ser protegidos, mas não dizem como, não dizem até que limite. E nem poderiam. Você imagina o Código Florestal entrando em detalhe em relação a cada uma das áreas que compõem os nossos ecossistemas, que tamanho que teria esse Código Florestal? É uma norma geral e os detalhes são estabelecidos por leis de hierarquia inferior ao Código. Nesse caso, o que amparava essa legislação eram as resoluções do Conama, que eram anteriores ao Código Florestal [a resolução 303 data de 2002]. E, desde que o Supremo julgou constitucional o novo Código, a gente tinha medo de que acontecesse o que aconteceu agora. Que de repente essas resoluções fossem derrubadas.
Caberá então aos estados interpretar o quê vai ser essa proteção? Como você acha que isso funcionará?
Mais ou menos isso sim. Os estados poderão, sem dúvida nenhuma, a partir do que o que o Código Florestal diz, e as leis específicas, como a Lei da Mata Atlântica, dizer o que vai ser. Mas aí nós temos outro problema. Por exemplo, nos estados do nordeste. Economicamente, carcinicultura pros estados é bom. Ecologicamente, é péssimo. O quê vai prevalecer? Os interesses econômicos ou os do meio ambiente? Pelo que a gente está vendo atualmente, os interesses ambientais estão em último lugar.
O que a gente consegue prever é que daqui para frente vai ser muito difícil. A não ser que surja alguma iniciativa legislativa que possa de alguma forma regulamentar esses dispositivos, dizendo o que é que tem que ser protegido. Mas eu não tenho esperança nos estados, sinceramente. Não tenho esperança de que os estados vão dizer que não pode a carcinicultura, por exemplo. Vai sobrar pra eles e eles vão privilegiar a atividade econômica em detrimento da proteção do meio ambiente.
A Resolução nº 303 regulamenta a proteção não apenas de restingas e manguezais, mas também de outras APPs, como nascentes e topos de morro. Como fica a proteção desses ambientes sem a resolução?
Algumas delas no Código Florestal já têm proteção específica. Por exemplo, as nascentes de rios. Então, eu acredito que a situação é melhor. Topos de morro também. O que a gente vê num primeiro momento é exatamente o risco às restingas e manguezais, mas pode ter mais coisa que venha a ser desprovida de proteção a partir desse momento. Mas algumas áreas o próprio Código Florestal já diz que não pode haver intervenção humana, nessas não se pode mexer. Mas essas que nem Código nem outra lei não especificam, essas estão desprotegidas.
No dia seguinte à votação, a Justiça emitiu liminar que suspendia a validade dos atos definidos na reunião. Três dias depois, a liminar foi derrubada e as decisões do Conama voltaram a valer. Qual sua perspectiva pro futuro dessa queda de braço jurídica?
Eu coordenei por 10 anos a 4ª Câmara [de de Coordenação e Revisão], que é a de Meio Ambiente, do Ministério Público Federal. E atualmente eu atuo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Núcleo de tutela coletiva, então eu atuo nesse tipo de ações. O que eu tenho visto é que nos Tribunais de Justiça normalmente os interesses econômicos sempre prevalecem. Nos Tribunais Regionais Federais, depende. Mas, de qualquer maneira, vai caber recurso com o STJ ou com o Supremo [para reverter a decisão do Conama]. São coisas que se arrastam durante um tempo e, enquanto isso, os manguezais e as restingas vão sendo destruídos. Mesmo que o Supremo venha a dizer mais a frente que não pode construir em área de restinga ou que não pode fazer tanques de carcinicultura em manguezais, mesmo assim já vai ter havido uma destruição daqueles ecossistemas que pode ser irreversível. E esse é o medo que a gente tem:, da irreversibilidade do que vai acontecer enquanto se discute na justiça, porque nunca é rápido.
Tem muita gente que não sabe para quê serve uma restinga ou um manguezal. E a gente precisa ir explicando para ver se as pessoas se tocam e veem o que estão tirando da gente. Porque as pessoas não sabem às vezes para que serve, aí quando desaparece elas descobrem, mas aí já não adianta mais.
Há um Projeto de Lei no Congresso – que entrou agora – restabelecendo a proteção dessas áreas [Projeto de Decreto de Lei apresentado pelo PSOL para sustar a decisão do colegiado ] , mas que não sabemos se será aprovado ou não. Me parece que a única solução agora está na mão dos legisladores. Se um Projeto de Lei passar dizendo alguma coisa a gente fica mais tranquilo. Mas hoje a composição do Congresso não é favorável ao meio ambiente, esse é o problema.
É importante também que se restabeleça a composição original do Conama , de 96 pessoas [hoje são 23], onde a sociedade civil possa ter participação e que seja uma participação paritária. O Conama hoje é um órgão composto exclusivamente por quem? Ministérios, confederações, tem um representante do Ministério Público e um representante sociedade, que é da ONG Planeta Verde, e que não puderam sequer falar nessa reunião, tiveram a palavra cortada. Então agora é 2 contra 21, não tem nada de paritário nisso aí.
Art. 1º Constitui objeto da presente Resolução o estabelecimento de parâmetros, definições e limites referentes às Áreas de Preservação Permanente.
Art. 2º Para os efeitos desta Resolução, são adotadas as seguintes definições:
(…)
VIII – restinga: depósito arenoso paralelo à linha da costa, de forma geralmente alongada, produzido por processos de sedimentação, onde se encontram diferentes comunidades que recebem infl uência marinha, também consideradas comunidades edáfi cas
por dependerem mais da natureza do substrato do que do clima. A cobertura vegetal nas
restingas ocorre em mosaico, e encontra-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões, apresentando, de acordo com o estágio sucessional, estrato herbáceo, arbustivo e
arbóreo, este último mais interiorizado;
IX – manguezal: ecossistema litorâneo que ocorre em terrenos baixos, sujeitos à ação
das marés, formado por vasas lodosas recentes ou arenosas, às quais se associa, predominantemente, a vegetação natural conhecida como mangue, com infl uência fl úvio-marinha,
típica de solos limosos de regiões estuarinas e com dispersão descontínua ao longo da
costa brasileira, entre os estados do Amapá e Santa Catarina;
(…)
Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área situada:
(…)
IX – nas restingas:
a) em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima;
b) em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues;
X – em manguezal, em toda a sua extensão;
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