Quando o visionário americano Benton MacKey vislumbrou a Appalachian Trail nem ele, nem ninguém que compartilhou daquela ideia embrionária, imaginou que seria possível fazer a trilha inteira, do início ao fim, de uma única vez. O ano era 1921 e só a perspectiva de se ter uma trilha que unisse as diversas trilhas regionais que existiam na costa leste dos Estados Unidos e assim ligasse 14 estados com um total de mais de 3.000 quilômetros, já era algo que soava extremamente ambicioso. Mas o projeto de implementação da trilha continuou a passos largos e em 14 de agosto de 1937 a Appalachian Trail estava finalizada.
No entanto, a ideia de que alguém pudesse completá-la de cabo a rabo, a pé, de uma só tacada, ainda parecia absurda.
Foi preciso mais de uma década para que Ed Shaffer, um veterano da Segunda Guerra Mundial e membro da Appalachian Trail Conservancy (ATC), o órgão não-governamental que gerencia a trilha, conseguisse fazer aquilo que ninguém acreditava ser possível. Durante o encontro anual do grupo, que acontecia no verão de 1948 em Fontana Village, uma cidadezinha no estado da Carolina do Norte por onde a trilha passa, os membros da ATC receberam uma mensagem de Shaffer. Ele estava no estado de Nova Iorque e havia começado a trilha no seu extremo sul, na Geórgia, no dia 4 de abril. Esperava completar toda a trilha nas próximas semanas. O grupo recebeu a notícia com ceticismo. Mas alguns dias depois Ed Shaffer escreveu aos membros novamente, desta vez para informar que havia chegado ao Monte Katahdin no dia 5 de agosto de 1948. Ele foi o primeiro thru-hiker da história.
Mas afinal, o que é thru-hike?
Bem, não existe uma definição muito clara. Mesmo nos Estados Unidos, onde o termo surgiu, não é consenso entre os caminhantes o que o termo define. Afinal, é uma palavra que não existe nos dicionários. No geral, todos concordam que thru-hike é o termo que designa o fato de alguém completar uma trilha inteira, do início ao fim. Não importa a extensão da trilha. Não importa a direção que você a faz. E se thru-hike é caminhar uma trilha do início ao fim, quem faz isso é chamado de thru-hiker.
Para a ATC um thru-hiker é alguém que completa toda a extensão da Appalachian Trail em 12 meses ou menos. Mas o termo não se limita à icônica trilha norte-americana: ele também é usado em todas as outras trilhas de longo curso naquele país. E com o crescente interesse em atividades ao ar livre no mundo todo, termos como thru-hike, thru-hiker e thru-hiking também passaram a ser usados para se referir aqueles que caminham toda a extensão de caminhos de peregrinação como Santiago de Compostela, na Espanha, ou fazem trilhas nacionais como a Te Araroa, na Nova Zelândia.
Por que ser um thru-hiker? Mais do que a definição da palavra, é importante esclarecer o que te faz um thru-hiker.
Quem já fez uma travessia ou qualquer trilha um pouco mais longa, que exige alguns dias caminhando e acampando, sabe o espanto que isso causa nas pessoas: “Você fez o quê? Você caminhou quanto? Por quantos dias? Pra quê? Por que você está fazendo isso? Pirou?”
Convenhamos: ser thru-hiker não é para qualquer um. Não é simplesmente caminhar por dias ou meses a fio e cobrir dezenas, centenas, às vezes milhares de quilômetros na jornada. É superar desafios pessoais, vencer seus temores, ir além do que você e todos os outros imaginavam ser possível. É ser autossustentável e carregar sua comida e seu abrigo. É estar em locais quase intocados da natureza, onde poucas pessoas estiveram. É buscar o autoconhecimento. É apoiar as comunidades locais e os voluntários que tornaram aquela jornada possível. É obedecer às regras de Leave No Trace (Não Deixe Rastros), e ter uma relação de respeito com o meio ambiente e os outros caminhantes (sejam eles thru-hikers ou não). É satisfazer as curiosidades dos amigos, reais e virtuais, que nos dias de hoje te acompanham durante todo o percurso por suas redes sociais e que gostariam de estar ali com você – ou simplesmente te admiram por estar fazendo aquilo. É superar os caprichos da natureza e encarar dias de calor inesperado, frio insuportável, chuva infindável. Ser thru-hiker é empreender em uma jornada física e levar seu corpo ao extremo (na Pacific Crest Trail, por exemplo, eu perdi 14 quilos nos quatro meses caminhando) e entrar de sola em uma incrível, inexplicável e inigualável viagem mental.
É impossível começar uma trilha de longo curso e terminá-la sendo a mesma pessoa. Ser thru-hiker é estar em constante mutação.
Ainda assim, não existem barreiras para ser um thru-hiker. Não importa sua idade, seu gênero, seu peso. Em 2013 a americana Neva Warren completou sozinha os 3.250 quilômetros da Appalachian Trail. Ela tinha 15 anos de idade. Quando fiz essa mesma trilha, em 2017, tive o enorme prazer me encontrar com Dale Sanders, o Grey Beard, que aos 82 anos se tornou a pessoa mais velha a percorrê-la. Sei de uma família inteira que fez a Appalachian Trail em 2018: pai, mãe e seis filhos, com idades entre 2 e 16 anos, começaram e terminaram a trilha juntos.
Niki Rellon teve uma das pernas amputadas depois de um acidente de escalada (seu capacete rachou em dois lugares, ela quebrou a bacia e sua perna ficou tão esmagada que precisou ser cortada). Mas isso não a impediu de completar a Pacific Crest Trail em 2006 e a Appalachian Trail em 2015. Não por acaso seu nome de trilha é Mulher Biônica. No ano passado, em 2019, enquanto eu fazia a PCT, outro caminhante chamava toda a atenção do público: Cory McDonald pesava mais de 180 quilos quando começou, na fronteira dos Estados Unidos com o México, ainda em janeiro. Além de obeso, estava deprimido e com sérios problemas cardíacos e de pressão. Depois de nove meses e um acidente que o tirou da trilha por algumas semanas ele chegou na fronteira com o Canadá, mais de 50 quilos mais magro e com a saúde mais equilibrada. Foi uma empreitada de nove meses. Mas Cory, o Second Chance Hiker, era finalmente um thru-hiker: ele havia caminhado 4.250 quilômetros – apesar de nos primeiros quatro dias ter andado apenas dez quilômetros no total.
E aqui no Brasil?
Quando fiz os 420 quilômetros do Caminho da Fé, em 2015, não conhecia a definição de thru-hike. Também não conhecia quando fiz a Estrada Real, de Diamantina a Paraty, no ano seguinte. Eu simplesmente saí e caminhei pelos dois, do início ao fim. Não me importava se eu era um thru-hiker. Porque não sabia que tal coisa existia.
Mas com a popularização do termo por aqui nestes últimos anos e com a consolidação da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso , começam a surgir aqueles que podem ser considerados os primeiros thru-hikers brasileiros. E eu não falo de gente que, como eu, saiu daqui para fazer trilhas em outros países. Mas de pessoas que começam a percorrer, de ponta a ponta, algumas das dezenas de trilhas longas que fazem parte da Rede e que começam ter sua demarcação e sinalização completas.
A Trilha Transcarioca, por exemplo, com seus 183 quilômetros de extensão, já completamente implementada, pode ser percorrida em duas semanas, seja seguindo as botas amarelas sobre o fundo preto no sentido Barra de Guaratiba-Urca ou no caminho inverso, seguindo as botas pretas sobre o retângulo amarelo. Por sua proximidade com a cidade, a Transcarioca também permite que o caminhante a faça por seções e fora da sequência natural da trilha. E um bom número de pessoas já fez isso.
Com 300 quilômetros de extensão e completamente sinalizado, o Caminho de Cora Coralina, no estado de Goiás, é mais semelhante aos caminhos de peregrinação europeus, como o de Santiago, ou as trilhas históricas, como a Estrada Real, em Minas. Seu traçado, primordialmente por estradas de terra, não permite acampar, exigindo o pernoite nas pequenas cidades e povoados do percurso. Por causa disso, o Caminho de Cora exige 18 dias de caminhada para ser feita do início ao fim. E também ali vários hikers já completaram todo o percurso entre os municípios de Corumbá de Goiás e Cidade de Goiás.
As trilhas de longo curso brasileiras de maior extensão e que têm características mais próximas das trilhas americanas (autossuficiência e necessidade de carregar todo seu equipamento de camping), como a Transmantiqueira, que tem 1.114 quilômetros previstos, e a Transespinhaço, com mais de 700 quilômetros planejados, ainda não têm um traçado definitivo ou não estão completamente sinalizadas. O que não impediu que algumas pessoas já tenham se aventurado pelos percursos.
Mas o grande desafio, aquele que acende o desejo de todo caminhante que curte trilhas (realmente) longas é a possibilidade de, um dia, poder caminhar do Oiapoque ao Chuí. Mas se uma trilha como a Appalachian Trail levou 16 anos para estar completa e outros onze para ser caminhada em sua totalidade em uma temporada, acredito que ainda vai demorar para que nós vejamos um thru-hiker brasileiro completar o percurso.
Mas é só questão de tempo. Hoje temos alguns poucos heróis que fizeram as trilhas já completas e sinalizadas e outros que se embrenharam por trechos ainda não terminados. E, a cada dia, mais e mais caminhantes, os nossos thru-hikers, estão fazendo – numa tacada só – as diversas e belas trilhas da Rede. Tudo a pé.
E, um dia, alguém irá ter o tempo, a coragem, a disposição e a preparação mental para caminhar toda a costa pelas trilhas brasileiras. Seja quem for essa pessoa (que eu espero ainda conhecer) fica aqui uma dica: não se intimide pelo tamanho da empreitada. Imagine que, no fundo, no fundo, essa trilha enorme será apenas uma rede, conectando pequenas trilhas e unidades de conservação pelo Brasil. De norte ao sul. Do Oiapoque ao Chuí.
Assista na íntegra a live sobre thru-hike realizada na última terça (29/09):
*Jeff “Speedy Gonzalez” Santos é autor do blog www.longadistancia.com
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