Em reunião virtual realizada na manhã desta segunda-feira (28), o colegiado que compõe o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) votou pela revogação de diversas resoluções, entre elas, a de número 303, que especificava parâmetros nacionais para Áreas de Proteção Permanente (APP), como restingas e manguezais. Apesar de previstas no Código Florestal como locais a serem protegidos, sem as normativas elaboradas pelo Conama, cada estado ficará responsável por definir seus próprios parâmetros para o estabelecimento de APPs. Segundo especialistas ouvidos por ((o))eco, além de fragilizar a proteção das áreas costeiras, o fim da norma nacional também pode provocar “guerra ambiental” entre os estados e insegurança jurídica.
A pauta da reunião foi definida pelo ministro do meio ambiente Ricardo Salles na última sexta-feira (25) e pegou todo mundo de surpresa ao pôr em xeque as resoluções, sem seguir a tramitação padrão, na qual a votação seria precedida por debates dentro da Câmara Técnica do Conama.
A revogação da norma nº 303/2002 foi votada pela maioria, num placar final de 12 x 7, já que estavam presentes apenas 19 do corpo atual de 23 conselheiros. A atual composição do Conama, presidido por Salles, é formada majoritariamente por ministérios e membros do governo federal já que, desde maio de 2019, o colegiado foi esvaziado por Salles.
Contra (7): Associação Novo Encanto, Instituto Internacional de Pesquisa e Responsabilidade Socioambiental Chico Mendes, governos municipais de Porto Alegre e Belém, governos estaduais de Piauí, Tocantins e Rio Grande do Sul.
Favor (12): Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Confederação Nacional da Indústria (CNI), representantes dos governos estaduais do Mato Grosso do Sul e do Rio de Janeiro, Casa Civil, Ibama, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), Ministério da Economia, Ministério da Infraestrutura, Ministério Minas e Energia, Secretaria de Governo da Presidência da República.
Por definição no Código Florestal brasileiro, Áreas de Proteção Permanente são cobertas ou não por vegetação nativa, “com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. O texto, entretanto, não regulamenta os parâmetros para essa proteção, quem fazia isso, até então, eram as resoluções 302 e 303 do Conama, elaboradas em 2002. Em particular, era através da Resolução nº 303 que ficava definido o caráter protetivo à nascentes, veredas, montanhas, restingas, manguezais e dunas.
No caso das restingas, o texto do Conama estabelecia uma faixa de 300 metros de proteção. O ponto foi um dos mais debatidos por especialistas que veem a perda dessa regulação como uma grave fragilização da legislação ambiental. O argumento apresentado pelo governo para defender a revogação é de que a resolução foi abarcada por leis que vieram depois, como o próprio Código Florestal.
“Você proteger restinga não é nem se precisa de norma ou não, é ciência, é evitar que você tenha erosão, que tenha impacto no mangue, é uma função que não é ambientalista que define. Onde já tirou restinga, você tem problema e quem pressiona que tire restinga é a especulação imobiliária. Ele [Salles] está atendendo interesse de quem quer ocupar esse lugar, que tem um valor especulativo imobiliário alto”, aponta Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.
“Não é se faz uma norma mais branda, mais ou menos complexa. Você tem que ter uma norma que quem vai dizer se é 300 metros é a universidade, é a ciência”, reforça Mantovani, que critica a falta de embasamento técnico com a qual foi conduzida a decisão do colegiado, que desde que foi desmantelado por Salles, em 2019, teve a participação da sociedade civil esvaziada. “Você tem câmaras técnicas no Conama, que poderiam emitir pareceres, mas não, marcou em cima da hora e com um Conselho que já não está legitimado”.
“Hoje a gente tem condição de fazer uma resolução melhor que essa, porque temos tecnologias melhores. Mas esse discurso, ‘ah a gente quer cumprir o Código Florestal’, isso é má fé. Não é isso que está em jogo. Estamos falando de um grupo que está promovendo um desmonte pra ter ganhos desses que ficam nos lobbys hoje, principalmente no setor imobiliário. Não é só uma questão técnica, jurídica ou institucional. O Código Florestal é lei geral, qualquer aluno de direito sabe disso, mas pra ele [Salles] interessa gerar a dúvida porque vai privilegiar os interesses de alguns grupos. É a pressão imobiliária e do CNA [Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil], que é a quem interessa essa dúvida”, detalha Mantovani.
A perda de uma normativa técnica geral para orientar a ação dos estados e seus órgãos ambientais competentes, também abre espaço para que cada estado faça sua interpretação, à revelia, o que, em última instância poderia gerar uma “guerra ambiental”, como apontou um dos membros do colegiado.
“Não é se são 300, 301 ou 299, mas é um critério técnico que foi definido no passado. Se ele está defasado e não se aplica mais, ele precisa ser revisado do ponto de vista técnico e para aí nós aplicarmos o que o legislador maior [Código Florestal] disse “restingas estão protegidas” e tecnicamente o Conama está avançando qual o melhor objeto de fazer essa proteção. Não tendo, revogando-se, vai recair sobre os órgãos de licenciamento. A única questão que eu temo, e tenho discutido isso com os nossos colaboradores dos outros estados, é que nós estamos partindo de uma guerra fiscal para uma guerra ambiental, porque em um estado vai ser mais restritivo, no outro não. Essa é a maior preocupação de nós revogarmos regramentos gerais partindo da União”, alertou Arthur Lemos, da Secretaria de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e representante da região sul na reunião, um dos que votou contrário à revogação.
“Se tivéssemos uma condição dos estados se alinharem efetivamente para definir o que é protetivo para um e o que não. O nosso receio recai sobre isso. Nós visualizamos no nordeste, no Rio Grande do Norte, principalmente, empreendimentos eólicos quase que em cima de dunas, e aqui no Rio Grande do Sul, nós entendemos por ser mais protetivo e pela legislação vigente, não. E aí passamos a ter uma condição de perder esses investimentos aqui no Rio Grande do Sul”, continuou o representante do Rio Grande do Sul.
Mantovani reforça que sem uma regra geral, cada estado poderá fazer a interpretação que quiser. “É um risco, mas o pior dos riscos é o governo hoje”, aponta. O diretor garante ainda que a revogação será questionada na justiça pela SOS Mata Atlântica. “Vamos judicializar, como fizemos quando tentaram acabar com a Lei da Mata Atlântica”.
A revogação da resolução 303/02 já havia sido discutida em 2017. Na época, a oceanógrafa Yara Schaeffer Novelli, especialista em ambientes costeiros, elaborou um parecer (leia aqui na íntegra ) no qual defende a necessidade da faixa de 300 metros para proteção de restingas, uma vez que as mesmas garantem: proteção da linha de costa frente aos sistemas frontais e forçantes climáticas; conservação da biodiversidade e restauração de áreas alteradas e/ou degradadas; e a estabilização de mangues.
“De repente, o ministro marca uma reunião extraordinária com uma pauta muito mal estruturada onde eles começam a remendar documentos e textos ali, na hora. Quem marca uma reunião extraordinária de um Conselho dessa envergadura não vai discutir termos na hora. E na hora que eles matam a resolução 303, eles estão eliminando uma estrutura legal que cuidava da zona costeira brasileira. Porque as restingas estão por trás das praias, as restingas estão protegendo manguezais em grande parte do litoral. Restingas e manguezais são uma unidade funcional, elas atuam protegendo a linha de costa. Então na hora que você permite empreendimentos imobiliários, resorts, hotéis, marinas ou prédios residenciais ali em cima… Na hora que você libera isso, você está tirando todo o resguardo, a proteção natural e gratuita que a natureza nos oferece, sem ônus, para proteção das nossas terras. É uma barbaridade o que aconteceu hoje e assim, de sopapo, sem um estudo prévio, porque os estudos já foram feitos. Os documentos que eu fiz colaborando com o Ministério do Meio Ambiente por solicitação em 2017, foi a primeira vez que tentaram fazer isso com as restingas, e o Ministério à época, consciente do seu dever constitucional, conseguiu barrar, porque vários estudos, comissões técnicas, demonstraram que não se podia perder esse diploma legal”, resume Yara, professora sênior da Universidade Federal de São Paulo (USP), em conversa com ((o))eco.
“Hoje foi corroborado o liberou geral. Eles atingiram o arcabouço legal brasileiro do direito ambiental que sempre foi elogiado e compartilhado como um patrimônio do Brasil. Essa reunião do Conama enterrou o espírito legal do direito ambiental brasileiro, gestado por mais de 40 anos. Em 2 horas foi desmontado, muito mais do que só essas resoluções que entraram em pauta hoje”, lamenta a oceanógrafo.
Yara ressalta que tem atuado junto com outros especialistas para produzir documentos técnicos para apoiar o judiciário. “Qual é a nossa função? O acadêmico, antes de tudo é cidadão, e nós estamos produzindo os documentos para subsidiar ações no Ministério Público Federal, no Ministério Público Estadual. A nossa missão é contribuir com elementos técnicos, disponibilizar esse conhecimento para o judiciário e pros jornalistas, porque nós confiamos na mídia para ser a nossa voz também”.
Assista aqui a reunião do Conama na íntegra
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O post “Revogação do Conama fragiliza proteção de restingas e manguezais” foi publicado em 28th September 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco