Dia 9 de abril de 2020, o jornalista Randau Marques deu seu último suspiro, aos 70 anos. Um infarto fulminante colocou um ponto final na vida daquele que se tornou o primeiro jornalista a fazer coberturas especiais sobre a temática do meio ambiente no Brasil. Um profissional que deixou legado e aprendizado imensuráveis para as atuais e futuras gerações.
Antes mesmo de temas como o aquecimento global e os riscos da poluição atmosférica e dos avanços do ser humano sobre a natureza ganharem a dimensão e o debate público que têm hoje, Randau já alertava em suas reportagens sobre os perigos da degradação ambiental. Ainda nas décadas de 1970 e 1980, ele demonstrava ser um visionário da causa ambiental no país.
Atuando no periódico paulista Jornal da Tarde, Randau foi responsável por escrever – literalmente – uma nova fase no jornalismo e na história do Brasil. O trabalho que desenvolveu contribuiu, inclusive, para que os movimentos ambientalistas de São Paulo passassem a se articular como nunca antes. Randau Marques e o próprio jornal chegaram a ser um dos membros fundadores de uma das mais importantes organizações não governamentais da temática ambiental do país: a SOS Mata Atlântica. Tudo isso foi possível graças ao olhar e à sensibilidade do profissional frente ao tema “meio ambiente”.
“Vale da Morte”
Nascido em um assentamento indígena na cidade de Icaçaba, no interior de São Paulo, Randau foi o responsável por criar a expressão “Vale da Morte” ao se referir a Cubatão, na Baixada Santista. Por causa da poluição desenfreada na localidade, bebês nasciam sem cérebro, portadores de anencefalia, em razão dos gases altamente venenosos expelidos pelo polo petroquímico da região.
Foi Randau quem apurou e levou ao conhecimento da sociedade toda aquela tragédia no início da década de 1980. A poluição era tão forte que provocava a chamada “chuva ácida”, que dizimava a cobertura vegetal da Serra do Mar.
Em 1981, devido às denúncias que fazia, Randau chegou a prestar depoimento a uma Comissão Especial de Inquérito, instalada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que apurava irregularidades no município de Cubatão e tentava dar soluções aos problemas da poluição ambiental. O tema prosseguiu sendo alvo de reportagens nos anos seguintes.
Em 1985, foi publicada no Jornal da Tarde uma grande reportagem de Randau sobre a poluição petroquímica, e a foto estampada na capa, com a legenda: “A Serra do Mar está desabando”, entrou para a história do jornalismo brasileiro. A situação era realmente desesperadora.
Devido à poluição e ao registro frequente da chuva ácida, Randau revelou que a Serra do Mar estava caindo. A manchete foi estampada com fotos da área, que, realmente, desmoronava. Dessa forma, a reportagem denunciava o estrago que a poluição do polo petroquímico causava à serra que abriga grande parte da Mata Atlântica ainda preservada do Brasil.
A situação era calamitosa. Uma fumaça preta e amarela saía das chaminés dia e noite e tomava conta de toda a cidade. Cubatão chegou a ser apontada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a cidade “mais poluída do mundo”. Como reação às denúncias, o governador de São Paulo da época, Franco Motoro, tombou a Serra do Mar, ao mesmo tempo que a Companhia Ambiental do governo paulista começou a promover ações para reverter a situação de Cubatão. Apenas dez anos depois do início da cobertura de Randau, Cubatão foi reconhecida na Conferência sobre o Meio Ambiente da ONU, Eco-92, como símbolo de recuperação ambiental.
Preso e torturado
Randau trabalhou na redação do Jornal da Tarde por mais de 21 anos. Ele ainda passou como repórter no Estado de São Paulo e na Agência Estado. Sem nunca ter feito o ensino superior, sempre foi definido como um repórter brilhante, responsável por trazer à tona grandes temas da área ambiental. Foi ele quem, pela primeira vez, publicou textos sobre os perigos do desmatamento da Amazônia. Fez isso já naquela época.
Todos os colegas o caracterizavam como um jornalista apaixonado pelo trabalho investigativo. Sua paixão e convicção pelo que fazia o fez ser preso durante o Regime Militar, em 1968, por ter escrito uma reportagem veiculada em um periódico da cidade de Franca (SP) em que denunciava a contaminação de sapateiros com chumbo.
Ele tinha entre 17 e 18 anos quando foi detido. Por ter sido submetido à tortura, com sessões de eletrochoque, Randau ficou com sequelas para o resto da vida, como epilepsia e outros problemas neurológicos. Quando deixou a prisão, no DOI-Codi, na capital paulista, procurou o Jornal da Tarde. Começou trabalhando como freelancer e foi contratado.
Luta contra usina nuclear
Em plena ditadura militar, Randau encampou uma série de reportagens para impedir a construção das usinas nucleares Iguape 4 e Iguape 5, em São Paulo.
Os militares, através da então Nuclebrás, queriam implantar as ditas usinas nucleares. Por meio das denúncias do jornalista, elas não saíram. Em 1986, foi decretada a Estação Ecológica que englobou a área da Reserva Estadual dos Itatins (criada em 1958). Um ano depois, em 1987, foi finalmente implantada a Estação Ecológica de Jureia-Itatins.
Entre as outras grandes reportagens que marcaram a carreira de Randau Marques, podem ser citadas a do deslizamento da Serra do Mar, que quase soterrou Caraguatatuba, em 1967, e as que impediram a construção de um aeroporto em Caucaia do Alto, na região metropolitana de São Paulo.
Devido à Covid-19, o corpo de Randau foi cremado sem velório e sem muitas homenagens. Deixou a esposa e três filhos. Além de fundar a SOS Mata Atlântica, Randau foi um dos responsáveis pela criação da Organização W (que atua na área de qualidade de vida) em plena ditadura militar. Randau atuou também como assessor especial da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Randau deixa saudades. E leva a nossa mais profunda admiração e os nossos aplausos e reconhecimento por tanto trabalho em defesa da natureza e do bem comum.
Randau Marques cresceu entre lavouras infestadas por pesticidas que matavam lavradores e a fauna. Garimpeiros viviam intoxicados por mercúrio e sapateiros eram frequentemente contaminados pelo chumbo das tachinhas usadas na indústria calçadista. Esse relato consta no livro Jornal da Tarde: uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, de Ferdinando Casagrande.
“Em 1963, todas essas angústias levaram o menino de 14 anos a rodar em mimeógrafo seu primeiro jornal de denúncias, chamado Boca no Trombone”, escreve o autor. Em Franca, para onde se mudara com a família, foi repórter de rádio e dos jornais A Tribuna e Comércio da Franca.
Republicado do Observatório de Justiça e Conservação através de parceria de conteúdo. |
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