No início do mês, um incêndio levou as brigadas do Parque Nacional da Serra dos Órgãos a trabalhar para conter o fogo que se alastrava na área protegida, localizada na região serrana do Rio de Janeiro. Além de impactar mananciais próximos a bacias hidrográficas, as chamas colocam em risco a existência de espécies que só ocorrem naquela região. Dentre os fatos que podem ter contribuído com o ocorrido, especialistas apontam ações humanas, como soltar balões, fazer fogueiras e queimar lixo. Todas essas atitudes têm em comum um fator: a desinformação.
Mestre em zoologia de animais vertebrados e especialista em manejo de espécies ameaçadas, Fernando Lima compartilha o dia a dia da sua pesquisa no podcast Desabrançando Árvores , prestes a completar 2 anos. Ao longo de seus mais de 16 anos de experiência em pesquisa e conservação de gatos-do-mato e outros vertebrados, ele concluiu que dados não informam. Por isso, juntamente com sua esposa Miriam Perilli, doutora em Ecologia e Conservação, criou uma iniciativa virtual para informar e conscientizar os internautas mais leigos sobre o meio ambiente com uma linguagem mais acessível e, como gostam de falar, “sem firula” e discurso de “ecochatos”.
Nesta edição do especial “Divulgadores da Ciência”, ((o))eco conversou com o especialista sobre conhecimento acadêmico, desafios para traduzir o conteúdo para o público e maneiras que a divulgação científica pode contribuir com a conservação do meio ambiente.
((o))eco: O Desabraçando Árvores se apresenta como uma iniciativa que nasce do cansaço do academicismo ecológico. De onde surgiu essa ideia?
Fernando Lima: O cansaço do academicismo ecológico é metade da história. Em um extremo você tem esse afastamento do universo acadêmico, que fica lá na universidade sem muito contato com a sociedade, produzindo uma ciência que não conversa com soluções do dia a dia. Mas no outro lado da moeda, você vê o estigma do ecochato, do bicho grilo e do abraçador de árvore, que são passionais e não têm base científica. O Desabraçando Árvores vem do cansaço desses dois estereótipos, do cientista sisudo na torre de marfim e do ecochato e abraçador de árvore.
Na verdade, a nossa preocupação com o meio ambiente é pautada por boa ciência e os nossos esforços de conservação são baseados em técnicas e princípios de extrema relevância nos esforços mundiais para conservação, com relação a questão de perda de habitat e de espécie e das mudanças climáticas. São pautas muito sérias e que não caem nessa fala do “lá vem o ecochato dar discurso e sermão”. A ideia surgiu da vontade de achar um caminho entre o universo acadêmico e a sociedade.
Sempre busquei fazer divulgação científica. Na graduação, fazia fanzine (publicação impressa independente) e escrevia muitos textos. Antes de 2015, estávamos vindo de um momento muito interessante para a ciência e tecnologia brasileira em que muita gente teve oportunidade de fazer pós-graduação e ir para o exterior por meio do programa Ciência sem Fronteiras. Com o grande corte de bolsas de estudos que começou a ter depois desse ano, eu me surpreendi com a passividade da sociedade e dos membros do universo acadêmico. Foi daí que comecei a pensar sobre a nossa responsabilidade na falta de atitude das pessoas, pois se a sociedade não está reagindo é por não saber da importância da ciência. Essa falta de conhecimento das pessoas é sinal que nós falhamos em demonstrar a importância da ciência e da tecnologia para a sociedade.
Eu tenho um perfil mais acadêmico, porém trabalho há 17 anos no IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, focado em práticas de conservação ambiental. No decorrer do projeto, incluí colegas da área, como o Fabiano Melo, professor universitário e o Rogério Cunha de Paula, servidor do ICMBio. Com isso, compartilhamos percepções e pontos de vistas plurais sobre a questão da conservação do meio ambiente. O principal objetivo do Desabraçando Árvores é traduzir a ideia para “minha tia”, apelidada carinhosamente no podcast de tia Cotinha, aquela tia do interior que todo mundo tem. Dessa forma, a gente explica o trabalho de profissionais focados na pesquisa sobre meio ambiente e conservação para que qualquer pessoa, incluindo a tia, entenda.
Como esse podcast contribui com a divulgação científica da ecologia e da conservação?
Fernando: Os ouvintes podem responder melhor essa pergunta. Temos apresentadores de diferentes setores da sociedade: privado, acadêmico, terceiro setor e público. Isso traz diferentes perspectivas sobre um mesmo tema. Além disso, sempre que possível e necessário, convidamos especialistas. Mas o grande diferencial é que não fazemos missa para padre. O nosso público não precisa ter um grande conhecimento para poder ouvir o podcast. Infelizmente muitas iniciativas de divulgação científica estão trabalhando para cientistas. O nosso feedback vem por meio de pessoas leigas, como minha tia que existe de verdade e alguns amigos de outras áreas. Adaptamos a linguagem a partir do retorno sobre o que eles entenderam e demonstram interesse. Um ponto interessante é que muita gente com doutorado ou que faz esforços de conservação veio falar que só conseguiu entender sobre biologia da conservação, por exemplo, depois de escutar um de nossos episódios.
Além disso, temos diferentes formatos. Há episódios temáticos, em que escolhemos um assunto e discutimos. Também fazemos leituras de e-mails e posts de redes sociais, para trocar ideia por meio de linguagem mais acessível com ouvintes que enviam e-mails e tweets. Nas entrevistas, o nosso grande diferencial é trabalhar para mostrar que ninguém nasceu herói da conservação ou um grande pesquisador. Tem sido interessante receber o feedback de jovens pesquisadores que se inspiram nas histórias de grandes referências no mundo da ecologia e da conservação brasileira, pois contamos como foi difícil chegar onde eles estão. O que dá um aspecto humano à pesquisa científica.
Quais são os maiores desafios na hora de traduzir os assuntos? Tem algum episódio que tenha te marcado?
Fernando: Eu sinto que os meus desafios são mais logísticos para fazer a divulgação científica alcançar mais gente. Com o nosso crescimento relativamente rápido, estamos no top trending dos agregadores de podcast. Somos o primeiro na categoria ciência e natureza do iTunes. Apesar dessa curva de crescimento, o desafio é fazer o nosso conteúdo chegar em mais pessoas diferentes das que estamos chegando.
Com relação à tradução do conteúdo, contamos com uma equipe bastante criativa. Um exemplo é a abertura do episódio 10, que tem uma explicação interessante sobre Hotspots de Biodiversidade [uma reserva de biodiversidade que deve ser protegida], Warfare Ecology [os impactos ecológicos em zonas de guerra], caça de troféu [prática de caça por prazer] e espécies invasoras . Esse foi um episódio que me marcou muito. Nele tem ainda a história do pesquisador Claudio Padua. Ele fala que abandonou uma carreira como empresário de sucesso e uma vida confortável no Rio de Janeiro para fazer biologia com 36 anos, viver na divisa do interior de São Paulo com o Mato Grosso e fazer pesquisa sobre o mico-leão-preto [Leontopithecus chrysopygus]. Esses desafios são muito marcantes e motivadores para a gente continuar com os nossos esforços de fazer ciência e atuar na área da conservação ambiental.
Outra edição inesquecível foi com a pesquisadora Flávia Miranda, pois é muito fácil criar uma aura ao redor dos ícones da conservação e de grandes cientistas. Mas eu descobri que para concluir o doutorado, a Flávia correu o risco de perder um dos braços em um ataque de tamanduá. Hoje é referência na conservação desses bichos. Esse tipo de história é muito recorrente no Desabraçando, pois a gente trabalha para mostrar o lado humano da pesquisa.
Quais são os fatos que levaram vocês a escolherem o formato de podcast? O grande consumo do público jovem por conteúdo em áudio na internet contribuiu para a escolha?
Fernando: Nós começamos um pouco antes do [formato] podcast ter esse salto de popularidade, marcado com o lançamento do formato via Spotify. Eu consumo esse tipo de conteúdo desde 2010 e sempre gostei muito. Com isso, eu comecei a pensar do porquê não têm podcasts focados em ecologia e conservação que falem de um jeito mais acessível e baseados em boa ciência. Apesar de ter podcast fazendo divulgação científica há muitos anos, eu sempre achei o conteúdo muito stricto sensu, voltado para quem já entende de ciência. Com isso, comecei a escrever vários textos de divulgação científica até que eu resolvi iniciar com o Desabraçando Árvores. Não existia essa questão de focar no nicho mais jovem. Foi uma escolha de gosto pessoal e comecei a trabalhar no projeto junto com a minha esposa Miriam Perilli, mestre em Ecologia e Conservação.
Recentemente foi lançado um conteúdo voltado para o público infantil, “Que Bicho é esse, Crianças?”. Quais são os cuidados tomados para falar com esse público? Vocês acreditam que com a grande quantidade de informações a nova geração pode ter mais consciência ambiental?
Fernando: No início, tínhamos um quadro “Que Bicho é esse?”, que era dentro das edições. Foi a partir do episódio 26 que a gente separou esse conteúdo para publicação semanal. Eu acho muito legal, pois tocamos a vocalização de um animal, as pessoas mandam e-mail tentando adivinhar e depois revelamos e falamos sobre a espécie com um especialista.
De maneira geral, somos muito desbocados nos outros conteúdos. Mas no “Que Bicho é esse?”, o conteúdo é mais “limpo” em termos de linguagem. Esses episódios são apresentados pela Miriam, que tem um jeito carinhoso de conversar e trazer curiosidades. Nós tivemos um feedback muito positivo e por termos filhos a gente sabe que toda criança gosta de ciência e de bichos. Com isso, pensamos em fazer esse conteúdo mais voltado para as crianças com linguagem mais lúdica, personagens e tempo mais curto para manter a atenção dos pequenos. Elas próprias enviam áudios com perguntas. Há vários professores e pedagogos pedindo para usar os episódios em aula.
Eu acredito que as novas gerações podem ter mais consciência ambiental, caso a gente saiba divulgar as informações de maneira eficiente, saudável e coerente. A nova geração tem mais condições de se preparar, pois a informação está disponível de uma forma que nunca foi vista na história. Claro que há muitas coisas ruins. Por isso, cabe a cada um disponibilizar e direcionar da melhor forma possível informações de qualidade às crianças.
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O post “Divulgadores da Ciência: um papo sobre conservação da natureza sem firulas” foi publicado em 19th August 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco