Nestes dias acontece uma série de atividades ligadas à Semana da Mata Atlântica, em decorrência de sua data nacional, que passou a ser comemorada em 27 de maio desde o ano de 2000. E, mesmo sendo considerada uma das áreas de maior biodiversidade do mundo, fornecendo serviços ecossistêmicos essenciais para aproximadamente 145 milhões de brasileiros que nela vivem, com uma Lei Federal de proteção (Lei nº 11.428/2006 , conhecida como Lei da Mata Atlântica, regulamentada pelo Decreto nº 6.660/2008 ), não seria adequado descrever o período como de festividades, e sim, de profunda reflexão e de uma urgente guinada na pauta ambiental nacional, que permita construir um sólido reforço à resistência pelo bioma que agoniza.
Mas, descrever o bioma como agonizante seria um exagero? Ou se estaria diante de um verdadeiro “não é isso tudo”, com mais um discurso alarmista e ideológico, de quem busca o pânico na sociedade? Definitivamente, não. Há anos se sabe que os números do Bioma Mata Atlântica estão acendendo todos os sinais de alerta. Ocorrendo, originalmente, em 17 estados brasileiros, do Rio Grande lá do Norte ao do Sul, o que se vê são áreas naturais com diferentes expressões florestais, manguezais, campos, restingas, brejos, todos desaparecendo. E, assim, um patrimônio riquíssimo do país, em princípio protegido constitucionalmente, diversificado em sua expressão da flora, fauna, suas relações e processos físicos, único em seu significado cultural, está deixando de existir.
Uma situação já bastante séria de retração da atenção a questões ambientais ganhou contornos catastróficos com o desfecho das eleições em 2018. Ficaram mais claros os sinais de que a estrutura institucional ambiental do país passaria a sofrer um ataque sistemático e coordenado, com vistas à sua destruição. Esta história está sendo bem documentada e retratada e, especificamente para o Bioma Mata Atlântica, tornou-se ainda mais aguda nos últimos meses.
Numa ação de perversidade indizível, literalmente tirando proveito da comoção ligada à morte de milhares de cidadãos brasileiros pela COVID-19, o ministro do Meio Ambiente coloca com todas as letras que o governo federal deve se aproveitar da desatenção da imprensa guardiã para um estouro figurativo e literal da boiada. E assim buscar artifícios para intensificar a fragilização do arcabouço legal de proteção ambiental do país.
Como um filho pródigo que deseja mostrar que faz bem suas tarefas, a recente divulgação da gravação do descobrimento de um Brasil hediondo, reunido no último 22 de abril, demonstrou que o ministro exemplificou seus malfeitos na figura da publicação do Despacho 4.410/2020, que abriria a impunidade a uma série de ilícitos ambientais cometidos em Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais no contexto do Bioma Mata Atlântica. Iniquidade que se soma a tantas outras que afetam o bioma, tais como as alterações na legislação das cavidades naturais ou em um novo decreto que suprime diversas formações vegetais do âmbito da Lei da Mata Atlântica.
E, nesse contexto, seria o estado do Paraná uma ilha de bom senso? Infelizmente, não. Na verdade, pode-se dizer que a onda de ataques ao Bioma Mata Atlântica, que tem assumido repercussão e voracidade nacional na atual gestão federal, está fortemente estruturada e agindo há mais tempo em terras paranaenses. Em 2016, alguns dos mesmos titereiros que hoje conduzem os rumos federais, por aqui se articularam ao legislativo estadual, com aval do executivo, para tentar sacramentar um conjunto de práticas delituosas que vêm praticando há décadas na região dos Campos Gerais. Foi somente com uma rara e exitosa conjugação de esforços envolvendo a comunidade de todo o Paraná, incluindo estudantes, pesquisadores, ambientalistas, artistas, imprensa, que um projeto legislativo de redução radical da Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana, a maior unidade de conservação estadual e que inclui as principais áreas do ecossistema de campos naturais do Bioma Mata Atlântica, terminou por ser arquivado.
Seria ingenuidade acreditar que uma derrota serviria para detê-los, afinal é bastante conhecido na Pedagogia o poder de aprendizagem com o erro. A atual interlocução facilitada no âmbito federal tem mantido presente o fantasma de uma inacreditável tentativa de anulação do decreto de criação do Parque Nacional dos Campos Gerais, um dos últimos recortes com um acervo completo da espetacular associação da geo e biodiversidade do Bioma Mata Atlântica na zona de passagem do Primeiro para o Segundo Planalto Paranaense, com cavernas, cachoeiras, lajeados, manchas de campos diversos e relictos de cerrado, além de trechos imponentes da Floresta Ombrófila Mista. Além disso a unidade de conservação federal padece da mesma sorte de entraves que o Instituto Chico Mendes tem sofrido no país afora, limitando drasticamente a atuação de seu corpo técnico.
Como não houve mudança ideológica relevante na principal cadeira do executivo estadual na última eleição, tampouco no legislativo, apenas algumas trocas de nomes e siglas de ocasião, a conclusão é que a área ambiental tem acumulado sobressaltos e grandes perdas. Qual a maior sinalização de zelo às avessas do que extinguir a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Paraná? Órgão que chegou a ser referência nacional? Com isso, o Bioma Mata Atlântica passou a receber uma nova e perniciosa atenção, o que tem incluído o esforço descomunal para comprometer trechos na zona litorânea, seja privilegiando interesses menores de grandes grupos no caso da Faixa de Infraestrutura, ou de figuras minúsculas no episódio da autorização de remoção da vegetação em áreas de restinga.
O risco ao ecossistema de Campos Naturais em associação com a Floresta com Araucária segue presente. Isto acontece na truculência ao atropelar o regramento básico de conservação do patrimônio natural e cultural tombado, atuando para a liberação das licenças para a implantação de novas linhas de transmissão de energia que cruzam os planaltos paranaenses. Neste caso se constata uma negligência flagrante quanto à possibilidade de traçados alternativos, além do óbvio descumprimento de exigências legais de procedimento, tais como o levantamento criterioso da existência de cavidades naturais na zona de influência do empreendimento.
A situação piora quando se avaliam outros empreendimentos de alto potencial degradador que estão em fase de licenciamento ambiental, como atividades de mineração, Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), Usinas Hidrelétricas (UHE) e centrais eólicas. Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) incompletos, de baixa qualidade e com ausência de levantamentos de dados primários, ou seja, sem realização de pesquisas in loco sobre as características naturais do local de implantação das obras e sua área de influência, são problemas persistentes nesses processos. Cabe aqui salientar o descaso do órgão ambiental estadual, seja por ineficiência e/ou negligência, que tem concedido licenças ambientais mesmo quando são verificados graves problemas nos EIAs.
O avanço desenfreado da agricultura e do plantio comercial de espécies arbóreas exóticas, sobretudo de Pinus, em áreas com vegetação campestre, tem exterminado os últimos fragmentos de campos nativos do Bioma Mata Atlântica nos Campos Gerais do Paraná. Conforme constatado por pesquisas a partir de técnicas de sensoriamento remoto por imagens orbitais, a implantação de centenas de quilômetros de drenos em área de recarga do Aquífero Furnas, importante manancial de águas subterrâneas da região, já destruiu incontáveis porções de campos brejosos.
A fauna e a flora nos Campos Gerais já acumulam perdas provavelmente irreversíveis. Estudos da Universidade Estadual de Ponta Grossa indicam que na APA da Escarpa Devoniana, 25 anos após sua criação em 1992, as áreas com predomínio de paisagens naturais (campos e florestas) passaram de 61% para 33% do total da unidade de conservação. Que assim tem se revelado pouco mais que inócua.
Se estas foram mudanças acumuladas ao longo de anos, mesmo que mais intensas em períodos mais recentes, o ano de 2020 tem trazido pontualmente mais motivos para preocupação. Algumas são medidas absurdas mesmo para os padrões dos desatinos federais, tal como a liberação de pesca no período do defeso, autorização com enorme risco de estrago à já combalida biodiversidade fluvial da região. Já outras vêm na forma de uma legislação desnecessária (e potencialmente muito danosa) para a autorização de exploração comercial da araucária.
Como ficou explícito, o grave momento de pandemia ou de crise hídrica sem precedentes no Paraná não servirão de impedimento para atentados ao patrimônio natural e cultural. Instruções normativas e decretos, além da condução de ineptos, insanos e/ou mal intencionados a cargos chave estarão no arsenal a ser utilizado contra o Bioma Mata Atlântica. Assim como no caso dos desmandos e afrontas quase cotidianos às instituições e à liturgia do cargo proporcionados pelo chefe de estado em Brasília, a reação ao bioma que agoniza ficará apenas nas notas de repúdio? Esta geração tem o direito de negar o amanhã à Mata Atlântica? Haverá espaço para sua data nos calendários futuros ou ela será mantida como um sadismo mórbido após sua extinção? E qual será o amanhã para os Campos Gerais? Com a palavra, nós que aqui estamos.
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O post “No Dia da Mata Atlântica, precisamos nos perguntar: qual o amanhã dos Campos Gerais?” foi publicado em 27th May 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco