A associação quase anedótica do presidente Jair Bolsonaro com a cloroquina, a droga com a qual ele promete pôr fim à pandemia no país, elevou o status de um patinho feio da indústria farmacêutica, a cloroquina, uma molécula utilizada clinicamente desde 1944 para combater malária e com efeitos adversos já registrados que vão de alergias a arritmias cardíacas, podendo provocar até a morte de pacientes suscetíveis.
Barata, com a patente expirada há mais de 50 anos, o “ovo de Colombo” do presidente Bolsonaro contra a pandemia, importado do presidente Donald Trump — o primeiro a propagandear a substância —, tem uma série de contraindicações e nenhuma comprovação científica de sua eficácia contra o coronavírus até o momento.
Ainda assim, a cloroquina e a hidroxicloroquina (substância derivada) vêm sendo utilizadas em diversos hospitais públicos e privados no Brasil, não raramente associadas ao antibiótico azitromicina, o que aumenta o risco de efeitos colaterais como atesta nota técnica da Fiocruz do dia 3 de abril, emitida a pedido da presidência da entidade.
“Eu imagino que a presidência pediu que fizéssemos a nota por causa da pressão, até na mídia, para que se comece a usar a cloroquina de forma maciça para o combate à Covid-19 e também pela dificuldade de fazer a comunidade entender que o fato de um medicamento ter um uso promissor em estudos pré-clínicos, não necessariamente significa que ele vai ser um bom medicamento nos estudos clínicos”, disse à Agência Pública, por telefone, a pesquisadora Flor Espinosa, da Fiocruz Amazonas, especialista em malária.
A dra. Flor também contou que o medicamento é relativamente seguro para malária, mas que em doses maiores a “toxicidade é muito alta”, e não há como prever as reações individuais, que podem se manifestar com uma única dose. Além disso, a contra-indicação para o uso conjunto da azitromicina consta da bula do fabricante, sublinha. “A cloroquina associada à azitromicina já foi usada no esquema terapêutico para prevenção de malária em gestantes africanas, e o que se observou, é que tem muito mais efeitos colaterais”, explica a pesquisadora.
Embora admita “ter curiosidade, sobre o uso de cloroquina em pacientes de coronavírus em estágios iniciais”, a dra. Flor alerta que “esse não é um medicamento que possa ser usado à toa, você não pode fazer um uso preventivo e ficar tomando o remédio indefinidamente”.
Na semana passada, o Ministério da Saúde (MS), que no dia 31 de março havia recomendado que o medicamento fosse usado apenas para o “uso compassivo” (prescrito apenas para doentes graves sem prognóstico de cura) de pacientes de coronavírus, liberou a opção para os médicos, com o consentimento dos pacientes. A decisão tornou oficial o uso em pacientes no estágio inicial da doença em hospitais privados como o da Rede D’Or, no Rio de Janeiro, e as unidades do Sancta Maggiore, que pertence ao plano de saúde Prevent Sênior, especializado em idosos. No dia 5 de abril, o diretor executivo da Prevent Sênior, Pedro Batista Jr., já fazia propaganda da experiência em entrevista no Youtube ao presidente do Instituto Mises, Hélio Beltrão, uma das lideranças da nova direita brasileira que chegou a oferecer pelo Twitter o medicamento a interessados. Naquele momento, os hospitais da Prevent Senior, que atendem principalmente maiores de 60 anos, já registravam 96 mortes por coronavírus, metade do total das mortes ocorridas em São Paulo pela doença. A empresa não fornece dados de mortes em pacientes tratados com a medicação por coronavírus por complicações cardíacas.
Na sexta-feira passada, dia 10 de abril, uma paciente do Hospital Sancta Maggiore de 53 anos, que se tratava em casa, morreu quatro dias depois de tomar por uma semana uma medicação receitada pelo hospital: cloroquina, azitromicina e tamiflu. A paciente era cardíaca, mas, mesmo sem necropsia nem exame positivo para a doença, a certidão registrou o óbito como causado por coronavírus. O advogado da Prevent Senior, Nelson Wilians disse à Folha que, “categoricamente, não é possível afirmar ou associar o tratamento à ocorrência da causa mortis“. “A paciente estava há seis dias sem a medicação. Qualquer ilação é temerária e má-fé”.
Redução do tempo de internação
“Mesmo que a hidroxicloroquina se mostre eficaz”, porque até agora “não há evidências robustas” que permitam “qualquer defesa possível da utilização da cloroquina nos pacientes da Covid-19”, destaca o professor do núcleo de Bioética da Universidade Federal do Rio do Janeiro, Reinaldo Guimarães, “não se deve considerar que ela vai curar pacientes. Até agora o que se tem, mesmo sem robustez, sem número suficiente de pacientes de controle dos ensaios, é que ela diminui o tempo de internação dos pacientes. Muito provavelmente, se for comprovado algum grau de eficácia, o desfecho não será a cura, mas sim a diminuição do tempo de internação. É bom, mas não é a bala de prata como parece que o presidente Bolsonaro quer dizer”, adverte Guimarães, que também é vice-presidente da Abrasco, Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
Produzida principalmente em laboratórios públicos no Brasil para o Programa Nacional de Combate à Malária, a cloroquina e a hidroxicloroquina tem a vantagem de não despertar a cobiça dos grandes laboratórios internacionais.
O motivo é simples: essas moléculas não têm patente, a principal fonte de lucro das multinacionais, embora algumas grandes farmacêuticas, como a francesa Sanofi, também produzam hidroxicloroquina, que anunciam como menos tóxica do que a cloroquina, destinada principalmente ao tratamento de Lúpus, artrite reumática e febre reumatóide.
O presidente Bolsonaro tem se utilizado desse trunfo. No dia 21 de março, ele já anunciava em uma de suas lives: “Decidimos que os laboratórios químicos e farmacêuticos do Exército devem ampliar imediatamente a produção desse medicamento [cloroquina]”. No dia 31 de março, ele repetiu a promessa em rede nacional, dizendo ter ordenado “a fabricação de 1 milhão de comprimidos em 12 dias de cloroquina pelo Exército”, o primeiro laboratório brasileiro a produzir cloroquina na Brasil, sendo medicamento de referência para o genérico da Cristália, uma empresa farmacêutica brasileira que também produz insumos farmacêuticos.
Procurado por e-mail e telefone, o Exército não divulgou os dados pedidos pela Pública sobre a produção regular de cloroquina e a porcentagem de aumento na fabricação para cumprir a meta anunciada pelo presidente. O site do Ministério da Defesa para o Covid-19 fala da produção de lotes de 500 mil comprimidos por semana e de colaboração entre Exército, Marinha e Aeronáutica, mas não faz referência à produção regular de cloroquina destinada ao Ministério da Saúde — todo o tratamento de malária é fornecido pelo SUS.
A Pública também perguntou para a assessoria do Exército qual o volume de compras de cloroquina de outros laboratórios pela instituição. Um pregão de 2018 do Comando do Exército localizado pela Pública no Portal de Transparência registra a intenção de compra de vários medicamentos para o Hospital Geral de Belém. Ali consta a aquisição de 300 comprimidos de cloroquina da empresa de genéricos Cristália. Aparentemente, o preço atesta a conveniência da medicação: R$ 138,00.
O Ministério da Saúde é o maior comprador de medicamentos do país, e a Cristália uma grande fornecedora do SUS. Seu dono, Ogari Pacheco, elegeu-se suplente de senador do Tocantins pelo DEM em 2018, com uma campanha que custou 1,5 milhão de reais, e sua família ainda doou mais 2,1 milhões ao cabeça de chapa, o senador Eduardo Gomes, do MDB.
A outra grande empresa de genéricos que produz hidroxicloroquina no Brasil, essa tendo como medicamento de referência o Plaquenil, da multinacional francesa Sanofi, é a EMS, a maior do setor, que faz parte do grupo empresarial NC, de Carlos Sánchez. Além de diversas farmacêuticas, o NC detém a NSC Comunicação, uma grande rede de jornais, rádios e TVs afiliadas da TV Globo em Santa Catarina. Sanchez estava entre os convidados da reunião online realizada pela Fiesp com o presidente Bolsonaro no dia 20 de março. Depois do encontro, Bolsonaro disse ter pedido ao presidente da Índia a liberação de insumos para a produção de hidroxicloroquina. No dia 8 passado, o presidente anunciou que a matéria-prima para a hidroxicloroquina já estava a caminho e agradeceu o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.
Outro fabricante de hidroxicloroquina no Brasil é o Apsen, que produz o Reuquinol, exibido por Bolsonaro em conferência online com os líderes do G-20. O dono da empresa, Renato Spallicci, é fã declarado do presidente, o que fez surgir rumores de lobby da indústria farmacêutica nacional em defesa da hidroxicloroquina. Nas eleições do ano passado, 356 candidatos receberam doações do setor, um total de 13,6 milhões de reais, segundo levantamento feito pela Repórter Brasil.
Procuradas pela Pública para falar da produção de hidroxicloroquina, a EMS e a Cristália também não responderam aos pedidos de entrevista e fornecimento de dados.
Acionista da Sanofi
O presidente Trump, que antecedeu Bolsonaro na defesa pela cloroquina, também foi acusado de ter outros interesses na liberação da hidroxicloroquina, além da promessa de uma cura milagrosa para a pandemia. A imprensa americana revelou no dia 6 de abril passado que, não apenas o presidente americano tem algumas ações da Sanofi, produtora do sulfato de hidroxicloroquina, sob o nome comercial de Plaquenil, como também Ken Fisher, grande doador do Partido Republicano, administra uma empresa que é uma das principais acionistas da farmacêutica francesa.
Conhecedor do mercado farmacêutico, Reinaldo Guimarães, vê com ceticismo os efeitos de um eventual lobby da iniciativa privada em torno da cloroquina e da hidroxicloroquina. “Não sei se a Sanofi está de fato interessada em fazer hidroxicloroquina para coronavírus; para essas empresas o que interessa é a patente. Se eles não tiverem no mínimo de 20 anos de produção eles não investem nisso”, diz. “Além disso, as farmacêuticas nacionais costumam trabalhar em parceria com os laboratórios públicos”, explica.
Guimarães, que foi secretário de Ciência e Tecnologia em Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, entre 2007-2010, na gestão de José Gomes Temporão, chama a atenção para o número de ensaios clínicos feitos no mundo — 117, segundo o Ministério da Saúde. No Brasil, há 53 estudos registrados no Conselho Nacional de Saúde (Conep) que estudam os efeitos de cloroquina a retrovirais, além de outros tecnologias como plasma sanguíneo e células tronco, em pacientes com coronavírus. A cloroquina e a hidroxicloroquina são as substâncias mais pesquisadas, sendo alvo de 10 ensaios clínicos. Dentro de “algumas semanas talvez, um mês no máximo”, poderemos ter “uma posição a respeito” de acordo com Guimarães.
“Estão experimentando um monte de coisas. A última que eu ouvi que o próprio ministro [Luiz Henrique] Mandetta falou ontem (08.04) é a ivermectina, que é um vermífugo veterinário. E tem um medicamento que se mostrou promissor em alguns ensaios, um antiviral (Remdesivir) de uma empresa americana chamada Gilead, que está fazendo um lobby internacional brutal. Talvez seja a empresa farmacêutica internacional mais predadora que existe. Foi ela que lançou aquele tratamento para hepatite C, por mil dólares a pílula, 75 mil dólares o tratamento”, relata Guimarães referindo-se ao medicamento Sofosbuvir, com taxa de 95% de cura para hepatite C e preço estratosférico.
Enquanto o Sofosbuvir não tinha o pedido de patente concedido no Brasil, o Farmanguinhos, laboratório da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, em parceria com a farmacêutica brasileira Blanver, produzia o genérico por um preço quase dez vezes menor do que o medicamento original. No final de 2018, o presidente Michel Temer concedeu a patente a Gilead. No ano passado, a Defensoria Pública, a ONG Médicos Sem Fronteiras e outras entidades entraram com uma representação no Cade por abuso de patente por parte da Gilead. Na representação , as entidades afirmam que a Gilead aumentou em 1.421,55% o preço médio do medicamento Sofosbuvir em vendas a órgãos públicos desde que passou a valer a patente concedida pelo Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), em janeiro daquele ano.
“Não há nenhuma humanidade na indústria farmacêutica mundial, os presidentes dessas companhias são empregados dos acionistas, então eles não fazem nada que possa prejudicar esses acionistas, senão eles perdem o emprego. Então, provavelmente, eles vão botar o preço lá em cima”, diz Guimarães.
Mais do que polêmicas, interesses políticos e econômicos
A Gilead também tem laços com a força-tarefa do coronavírus do governo dos Estados Unidos. O assessor de Trump, Joseph Grogan, que é membro da força-tarefa, foi lobista da companhia entre 2011 e 2017. Em 2014, o Remdesevir foi desenvolvido para combater o primeiro surto da epidemia de Ebola mas, depois de bons resultados iniciais, decepcionou. Voltou ao centro das atenções depois de ser usado para o tratamento de alguns pacientes de coronavírus.
Trump, que já havia incluído o Remdesevir em suas declarações sobre a “cura iminente” da doença, concentrou a força no antiviral depois que um de seus principais aliados científicos, a The International Society of Antimicrobial Chemotherapy (ISAC), mudou de ideia sobre a validade do ensaio francês favorável ao uso de hidroxicloroquina, base da defesa do uso da substância em pacientes de Covid-19. Em uma nota pública de 3 de abril passado, a ISAC afirmou que “o artigo não satisfaz os padrões esperados pela sociedade”, e criticou a publicação apressada do estudo. Na quinta-feira passada (09/04), hospitais da Suécia também interromperam o tratamento com cloroquina devido ao aparecimento de arritmias cardíacas e outros sintomas entre os pacientes. “Não podemos descartar efeitos colaterais sérios, especialmente no coração, e é um medicamento de alta dosagem. Além disso, não temos fortes evidências de que a cloroquina tenha efeito sobre a Covid-19 “, disse Magnus Gisslén, chefe da clínica de infecção do Hospital Universitário Sahlgrenska Gisslen ao Gothenburg Post.
No dia 23 de março passado, o site americano The Intercept, revelou que o FDA — Food and Drugs Administration, havia concedido ao medicamento Remdesivir, da Gilead Science, o status de “droga órfã”, no qual normalmente são enquadrados os fármacos para doenças raras. A reportagem também relata que, horas antes de obter o benefício, a empresa havia ameaçado suspender o acesso emergencial do produto, que estava sendo ministrado para pacientes internados em estado grave nos Estados Unidos, na China, Japão e Europa.
Assim que anunciou a conquista da exclusividade do antiviral as ações da empresa subiram 2%, mas as críticas nacionais e internacionais também subiram de tom. Além dos sete anos de total exclusividade do mercado, a inclusão do antiviral da Gilead no mercado de doenças raras, que fatura mais de 100 bilhões de dólares por ano, poderia impedir os próprios americanos de ter acesso ao medicamento, já que o custo médio de um ano de tratamento com esse tipo de droga chega a quase 100 mil dólares. A empresa acabou renunciando a colocar o Remdesevir na categoria de medicamentos raros, embora continue detendo a patente do medicamento nos Estados Unidos.
No Brasil, como em outros 70 países, a Gilead entrou com um pedido de patente no INPI, mas o remédio ainda não tem registro na Anvisa. Na prática, porém, os pedidos já funcionam para garantir o “monopólio da droga”, como explica Gabriela Costa Chaves, pesquisadora licenciada da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, que fez um estudo sobre o impacto de medicamentos exclusivos nas compras públicas do governo. Ali observou que alguns medicamentos vendidos como exclusivos sequer tiveram a patente concedida. “Só o pedido de patente pode assegurar o monopólio porque aí existe um desincentivo para que outras empresas entrem no mercado”, explica.
A possibilidade de que o medicamento e/ou vacina de fato eficazes para o coronavírus sejam desenvolvidos por grandes farmacêuticas internacionais coloca em alerta especialistas como Jorge Bermudez, chefe de Política de Medicamentos da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. “Se um medicamento como o Remdesevir ou outro produto exclusivo se provar eficaz nos estudos clínicos que estão sendo realizados, temos que encontrar maneiras de torná-lo acessível a todos, principalmente no hemisfério sul. Já estamos vivendo uma disputa acirrada por produtos para o coronavírus, e nada garante que vamos ter acesso a medicamentos produzidos por essa indústria bilionária dos países desenvolvidos”, diz Bermudez.
Tanto Bermudez como Guimarães defendem a suspensão de patente de qualquer medicamento que venha a se provar útil nos ensaios clínicos com pacientes de coronavírus. Segundo eles, o licenciamento compulsório está previsto no acordo de propriedade intelectual da Organização Mundial de Comércio (OMC), o Trips, em caso de emergências internacionais e nacionais de saúde pública.
“O que nós não queremos é que haja monopólio. Se a empresa quer vender que seja por mil dólares, não, vamos ver qual o custo de produção e vamos ver quem pode produzir. Importar inicialmente de países como a Índia, que não reconhece patentes, e depois desenvolver aqui, porque para o Brasil é importante ter a capacitação tecnológica, ter a segurança que a gente vai poder se tratar. Nós já usamos o mecanismo de licenciamento compulsório em 2006, com o Efavirenz, um antirretroviral utilizado na resposta brasileira ao HIV/Aids, naquela época considerada como um modelo para o mundo”, lembra Bermudez.
Já Guimarães se preocupa especialmente com a possibilidade de acesso no caso da descoberta de uma vacina contra o coronavírus, pesquisada por grandes empresas como a Johnson & Johnson e a Abbot, e que exige ensaios clínicos bem mais longos e complexos do que os que testam medicamentos.
“Isso é uma guerra. A indústria de vacinas, que historicamente tinha uma concepção mais humanitária, foi toda comprada há uns 10, 15 anos pelas grandes farmacêuticas porque os medicamentos mais modernos são quase biológicos. Uma vacina em uma epidemia dessas tem um valor astronômico e, aí, mesmo que pudéssemos comprar, não há garantia de que ela vai chegar ao Brasil”, explica o vice-presidente da Abrasco.
“Para uma ameaça global, uma resposta global”
O principal ensaio clínico para o uso de medicamentos em pacientes de coronavírus é o da Organização Mundial de Saúde (OMS), no âmbito do projeto Solidariedade, que tem quatro braços terapêuticos para o tratamento de pacientes internados em hospitais e centros de pesquisa de 70 países.
Coordenado pela Fiocruz, no Brasil, o ensaio abrange 18 hospitais em 12 estados — do Rio Grande do Sul ao Amazonas. Os pacientes que participarão do ensaio, são apenas aqueles em estado grave, internados nesses hospitais e têm que concordar em participar do ensaio. “Para uma ameaça global, uma resposta global”, resumiu Valdinea Veloso, diretora do Instituto de Infectologia Evandro Chagas, também da Fiocruz, ao falar do projeto em coletiva online. Segundo ela, os medicamentos serão cedidos pela OMS e o estudo vai custar 4 milhões de reais.
Em sua birra com a OMS e com as instituições de pesquisa brasileiras que defendem o isolamento social, Bolsonaro nunca menciona esse ensaio, preferindo girar o holofote para os ensaios de hospitais privados, como o Einstein, que estudam principalmente a hidroxicloroquina, fornecida pela EMS, combinada com a azitromicina e ministradas a pacientes internados. Mas é a escala e diversidade de pacientes dos ensaios da OMS que pode “trazer respostas mais rápidas” sobre os medicamentos eficazes contra o coronavírus, como destacou Veloso.
A partir de um levantamento sobre os estudos pré-clínicos ao redor do mundo que testaram medicações para o coronavírus desde o início da pandemia, a OMS levantou quatro terapias com medicamentos que já demonstraram algum efeito no tratamento da doença. Por enquanto, serão testados a cloroquina, que pode ser intercambiada com a hidroxicloroquina; os medicamentos lopinavir e ritonavir, combinados, como já são utilizados em pacientes de HIV/Aids; o Interferon, produzido pelos cubanos e usado na China; e o já citado Remdesivir, da Gilead, que obteve alguns resultados positivos na evolução de pacientes internados por coronavírus fora do Brasil.
A ideia é examinar com critérios científicos a eficácia desses medicamentos, já que nenhum estudo feito até agora contou com um contingente populacional relevante, e que comparasse o tratamento com diferentes medicamentos. Para que os medicamentos sejam rapidamente aplicados ou descartados por profissionais de saúde de todo o mundo, o ensaio não vai esperar a conclusão final, divulgando conclusões parciais na medida do possível. Medicamentos não incluídos nessa fase inicial dos ensaios, também podem vir a ser testados, se obtiverem resultados promissores em outras pesquisas.
No caso de um tratamento eficaz ser encontrado, “vai haver uma grande força-tarefa para produzir esses medicamentos em uma quantidade que possa atender à nossa população”, disse, na mesma coletiva, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade de Lima. “É importante destacar como é importante um país ter capacidade de produzir medicamentos porque, quem tem essa capacidade, vai produzir primeiro para sua população.”
De acordo com ela, a produção por laboratórios públicos e privados “ainda não está definida, até porque trabalhamos em muitas parcerias para o desenvolvimento produtivo”. E ressaltou: “Do ponto de vista da Fiocruz, nosso Instituto Farmanguinhos terá condições de prover o SUS com os medicamentos que forem avaliados como de melhor resposta terapêutica. Isso é uma fortaleza da nossa instituição, é uma fortaleza do Ministério da Saúde, é uma fortaleza do SUS muito importante de se lembrar nesse momento porque garante o acesso da população ao medicamento”.
Resta saber se o Brasil terá liberdade para produzir medicamentos que estiverem sob patente. O que também depende do poder de pressão dos países. Um exemplo: depois que Israel emitiu uma licença compulsória para o uso do medicamento Kaletra, que produz a combinação de lopinavir e ritonavir testada também no ensaio da OMS, a biofarmacêutica Abbvie, que nasceu nos Estados Unidos e hoje opera em diversos países, abriu mão da patente do medicamento enquanto durar a pandemia de coronavírus.
Uma proposta feita no fim do mês passado pela Costa Rica, aplaudida pela OMS e Unitaid (divisão da ONU voltada para a inovação em saúde) sugere o compartilhamento voluntário de todas as tecnologias de saúde durante a pandemia. A Gilead Sciences informou ter conhecimento da proposta da Costa Rica e informou que iria avaliar qualquer programa definido pela OMS.
Nas mãos de Rodrigo Maia
causaAlém de Israel, Canadá, Alemanha, Chile e Equador já aprovaram os processos para obter licenças compulsórias para tecnologias do coronavírus. No Brasil, uma iniciativa do Fórum das ONGs de enfrentamento à HIV/Aids e Hepatite do Estado de São Paulo (Foaesp) e do Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual, coletivo de entidades da sociedade civil, da área acadêmica e de pesquisa, que estudam as patentes na área da saúde, resultou em projeto de Lei apresentado pelo deputado Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da saúde do governo Dilma e presidente da Frente Parlamentar de Enfrentamento a Aids e HIV.
O projeto de Padilha foi unificado com projetos semelhantes de outros deputados e se consolidou no PL 1462/2020, apresentado no dia 2 de abril por 11 deputados de 8 legendas — do PT ao PSL. O objetivo é acrescentar um dispositivo na lei 9.279/96, a chamada Lei das Patentes, permitindo a licença compulsória em casos de emergência de saúde pública ou de pandemia, como ocorre no momento. A lista de medicamentos ou equipamentos que poderiam ter a patente suspensa seria feita pelo INPI — Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O titular da patente continuaria sendo remunerado, com percentual de 1,5% sobre o preço comercializado, mas outras empresas também poderiam produzir e vender o produto.
“Esse mecanismo já está previsto no Trips, não há conflito com o acordo da OMC sobre propriedade intelectual. A ideia do projeto é tornar mais célere a concessão de licenças compulsórias, eliminando atrasos que podem ser fatais em emergência sanitárias como a que estamos vivendo”, explica Padilha, acrescentando que a licença compulsória se estenderia também a produtos que ainda estão sendo testados.
“Todos os medicamentos estão em fase de avaliação, nenhum foi confirmado. Nem a hidroxicloroquina está autorizada; só para ensaios clínicos e uso sob observação. Aí tem os grupos de antivirais e, de todos eles, o que teve melhor resultado agora é o favipiravir, um antiviral japonês com patente registrada há duas semanas no Japão. Também há outras terapias com uso de anticoagulante, anticorpos monoclonais, além das possibilidades de vacina”, afirma Padilha.
O projeto foi aprovado na Comissão Especial do Coronavírus e enviado com prioridade para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que pode colocá-lo em votação ainda nesta semana.
A Interfarma — entidade que reúne os laboratórios internacionais — já se manifestou contrariamente ao projeto. Reconhecida por generosas doações eleitorais enquanto contribuições de pessoas jurídicas eram permitidas no Brasil, a empresa patrocinou em 2010 a eleição de um deputado federal muito falado nesse momento: o ex-ministro e deputado Osmar Terra, aliado de Bolsonaro contra o confinamento e inimigo do ministro Mandetta, que o apelidou de Osmar Trevas. Ainda assim, Padilha acredita que o projeto não será barrado pela bancada farmacêutica do Congresso. “Essa tem sido uma postura tradicional dessas entidades da indústria internacional, mas o projeto deixa muito claro que a licença vale apenas no período da pandemia. Seria um gesto muito impopular se opor a ele. Para mim está muito claro que, sem isso, teremos dificuldade de acesso a um medicamento realmente eficaz que venha a ser descoberto”, conclui o deputado.
Fonte
O post “A cloroquina não é a bala de prata que o Bolsonaro diz” foi publicado em 13th April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública