A espécie humana é muito resiliente. É verdade, mas até que ponto? A humanidade pode continuar a enfrentar seus “inimigos” naturais apenas reagindo casuisticamente, a cada vez? Não seria melhor enfrentar o problema na sua origem, ou seja, atacar sua causa profunda? Nesta nota, que não diz nada que não seja bem conhecido há muitas décadas, essas causas são revisadas e se faz especulações sobre o futuro, caso o problema subjacente não seja abordado.
Crescei e multiplicai-vos
“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.”
Se multiplicar e sobreviver é uma marca de fábrica de todas as espécies. Sem isso elas não existiriam. A capacidade de proliferar, isto é, o potencial reprodutivo, é diferente para cada espécie. O outro elemento, igualmente característico de cada espécie, é o seu potencial de sobrevivência, ou seja, a capacidade das espécies de manter seus indivíduos vivos. Na natureza, espécies com alto potencial reprodutivo, como coelhos e pulgões, têm baixo potencial de sobrevivência e vice-versa. Por exemplo, as onças se reproduzem lentamente e em pequenos números, mas vivem mais e podem se defender. Os ursos também se reproduzem lentamente, mas são capazes de comer vegetais e animais, o que a onça não pode. O resultado do equilíbrio entre o potencial reprodutivo e o de sobrevivência determina o chamado potencial biótico de cada espécie, seja animal ou vegetal e também vírus. Com seu próprio potencial biótico, as espécies enfrentam o que é conhecido como resistência do meio ambiente, que é tudo o que facilita ou dificulta sua vida, incluindo fatores climáticos e a disponibilidade de abrigos; inimigos naturais, incluindo doenças; a abundância ou falta de alimentos; a competição por espaço, água e alimentos com outras espécies – e é claro –, dentro da mesma espécie. Esse sistema, na natureza, funciona muito bem. Os desequilíbrios ocorrem constantemente, mas são sempre neutralizados. Por exemplo, o veado pode proliferar muito devido a um clima favorável que permite que as plantas que os alimentam cresçam melhor, o que ajuda os pumas a aumentar sua população pôs terão mais veados para comer. Mas, num ciclo subsequente tudo terá voltado ao normal. Obviamente, isso não é tão simples assim. É apenas um capítulo da ecologia, uma ciência enorme e complexa.
Infelizmente, ou felizmente (tudo é relativo), o ser humano, que possui um potencial reprodutivo natural discreto, foi dotado de outras virtudes que lhe conferem um enorme potencial de sobrevivência, entre elas sua inteligência privilegiada, que lhe permitiu, quase desde que sua espécie apareceu, superar as limitações do meio ambiente e empurrar seu potencial biótico acima do que a maioria das outras espécies conseguiu. Quando ficou sem comida, inventou a agricultura e manipulou os genes de seus alimentos e nunca mais lhe faltou algo para comer; quando ficou doente, inventou xamãs e depois remédios, médicos e hospitais e muitos mais viveram mais tempo; para se defender de outros animais, incluindo seus congêneres, ele inventou armas e exércitos; para se defender de seus concorrentes, como as pragas de suas colheitas, ele inventou praguicidas; quando ficou sem espaço nas cavernas, inventou malocas, casas e até aprendeu a viver empilhado, um em cima do outro em prédios; quando foi difícil conseguir lenha, ele inventou a eletricidade e… claro, ele inventou muito mais. Em outras palavras, o que limita o crescimento de uma população natural de plantas e animais, a resistência do meio ambiente, nunca foi um obstáculo ao crescimento humano. E esse é o problema.
De fato, a extraordinária capacidade intelectual, inclusive a de se conhecer a si mesmo muito bem, que tornou os seres humanos tão diferentes de outras espécies animais, não serviu de contrapeso à irracionalidade congênita de procriar, ou seja, procurar inconsciente e conscientemente, o aumento sem sentido e constante do número de espécimes de sua espécie. Daí o seu caráter monstruoso. Por um lado, ele é profundamente animalesco em termos de aumentar e defender seus números, inclusive com incrível crueldade, mas, por outro lado, ao invés de usar sua inteligência e capacidade para manter o equilíbrio, ele a usa para quebrar todos os princípios da natureza, da qual nem mesmo o ser humano pode escapar para sempre.
Os “inimigos” naturais da humanidade
É necessário esclarecer que na natureza não existem “inimigos”. Um inimigo natural, como os humanos chamam os predadores e parasitas, tem a função essencial de restaurar os equilíbrios perturbados ou quebrados da natureza. Sem eles, poucas espécies proliferariam, prejudicando as outras. É exatamente isso que o ser humano faz, ele mesmo, como espécie, e através das atividades agropecuária. Portanto, considera todas as outras espécies como inimigas (incluindo concorrentes), exceto aquelas que lhes são úteis, como as abelhas.
Como visto o principal inimigo “natural”, embora seu caráter natural seja duvidoso, do ser humano são os demais seres humanos. Em outras palavras, é uma competição intraespecífica, entre humanos. Isso se manifesta através de massacres, ou seja, dizimando a população ou, através da competição, como no caso das “guerras comerciais” ou da injustiça em suas diversas formas. As guerras mundiais e muitas outras, que foram letais para milhões de seres humanos em poucos anos, são uma expressão típica da humanidade como um inimigo “natural”. Mas é preciso lembrar que milhares de pessoas são mortas todos os dias por guerras locais, revoluções, assassinatos ou, por exemplo, acidentes de trânsito. Pior, talvez, que a mortalidade direta mencionada seja a competição intraespecífica, menos visível, por espaço, comida e tantos outros bens. Vale lembrar que a alta densidade populacional, especialmente urbana, está na origem da falta de infraestrutura, da má qualidade da saúde e educação públicas, da insegurança pública, desigualdade e, finalmente, da pobreza, que é sua pior consequência.
A alta densidade da população humana que envolve a luta por poucos recursos, que também são acumulados por uma casta social em desfavor das demais, é também a explicação para a falta de preparo da sociedade para enfrentar a expansão do coronavírus que atinge quase todos os países, sem condições para controlá-lo. E, é claro, a própria acumulação humana, expressa nas grandes urbes como Nova York, Tóquio ou São Paulo e em quase todas as atividades sociais da humanidade, dentre elas a facilidade de viajar, é propícia à disseminação ou contágio… é por isso que as autoridades determinam quarentenas e outras medidas de isolamento social.
Obviamente, os seres humanos também têm inimigos naturais que podem ser concorrentes, competidores ou parasitas, ou seja, inimigos interespecíficos. Antes eram animais ferozes, víboras malignas e outros demônios que se acreditava habitam as florestas sombrias. Quase todos eles desapareceram pela ação humana. Mas ainda existe um grande número de espécies de insetos, fungos e outros animais e plantas que competem com os humanos por alimentos, formando pragas e pestes. Entre eles estão os insetos que transmitem doenças e muitos micróbios que as ocasionam. Os agrotóxicos foram inventados para combater as pragas e pestes agrícolas e, graças a isso, são mais ou menos controladas. E, as vacinas foram inventadas para controlar micróbios. No entanto os vírus têm características especiais.
As ligações entre dois mundos
Os vírus são inimigos naturais do ser humano e de outros seres vivos. Mas eles não são plantas, animais ou fungos, talvez sejam apenas elos entre o mundo mineral e o mundo dos vivos, com um potencial muito alto de multiplicação (tecnicamente eles não se reproduzem, apenas se multiplicam), o que é sua principal arma. E eles encontraram na tão lotada espécie humana a oportunidade ideal para se desenvolver. Seu potencial de sobrevivência é baixo. Eles não vivem muito tempo fora das células dos seres vivos e são muito suscetíveis a altas temperaturas. Porém, no caso do coronavírus, sobrevivem tempo suficiente para se espalhar entre os seres humanos.
Como já foi dito, a principal causa da pandemia atual é a alta densidade da população humana (estamos perto dos 8 bilhões de pessoas) cujos indivíduos e atividades transbordam sobre o que resta da natureza mais ou menos natural. Na realidade, o impacto da humanidade não deixou nada, absolutamente nada, sem a sua marca. Basta lembrar o que acontece nas florestas tropicais ou nos mares. Como é bem sabido, grande parte da natureza já morreu e o que resta dela está morrendo. Há evidências de que novas doenças virais ou outras se originam precisamente no ponto de encontro entre espaços ainda seminaturais e os antropogênicos. A humanidade invade os ecossistemas naturais e os modifica drasticamente, degradando-os e liberando involuntariamente micróbios de seus hospedeiros naturais. De fato, mais de 70% das doenças novas e emergentes que infectam seres humanos se originaram em animais. Os patógenos desses animais, cada vez mais escassos devido à caça e à destruição de seus ecossistemas, em busca de novos hospedeiros, atravessam a fronteira entre animais e humanos e se espalham rapidamente. Além disso, os animais selvagens que são forçados a viver em habitats degradados ou antropogênicos têm alimentação inadequada ou insuficiente e saúde debilitada, portanto, são mais propensos a serem afetados por vírus e, quando consumidos ou manipulados, infectam seres humanos.
No entanto, o futuro do coronavírus não passará do momento em que a vacina ad hoc for inventada, devolvendo-o ao seu lugar na natureza. Este vírus será dominado, domesticado e aprenderemos a conviver com ele, como acontece com milhares de outros micróbio s. O problema é que, enquanto a população humana continue crescendo e expandindo sobre o pouco que resta do mundo natural, a oportunidade para libertar outros vírus estará sempre aberta. É importante lembrar que as mudanças climáticas estão derretendo os polos e as regiões circumpolares, expondo vastas extensões de território cheias de micróbios desconhecidos que estavam latentes abaixo de metros e mais metros de gelo permanente. Agora eles estão revivendo. Portanto, no futuro, não apenas precisamos nos preocupar com os microrganismos que saem das florestas tropicais, mas, muitos mais e menos conhecidos, ou seja, agarrando a humanidade ainda menos preparada, poderão vir do extremo norte do planeta, talvez também do sul e das profundezas da terra e do mar, para não mencionar os produzidos em laboratórios militares.
O que fazer?
Como dito, a espécie humana é extremamente resiliente. Não há coronavírus capaz de exterminá-la. Somente o próprio ser humano esteve perto de ter sucesso. Por exemplo, com as duas guerras mundiais, com as armas nucleares armazenadas e, de maneira mais secreta e progressiva, com a destruição do ambiente natural. Mas, a metade dos humanos que é mais honesta e menos estúpida sempre conseguiu tirar todo mundo do desastre anunciado. E, possivelmente, isso continuará sendo assim.
A maneira mais óbvia e simples de evitar futuras tragédias não é reduzir a população humana, é limitar seu crescimento. Isso não resolverá completamente os impactos da mudança climática, que já está irremediavelmente desencadeada, mas, a médio e especialmente a longo prazo, evitará algumas de suas piores consequências. Isso desacelerará, especialmente através da redução da pobreza, o avanço desenfreado da humanidade no pouco da natureza que ainda existe no planeta e permitirá tirar proveito das maravilhas tecnológicas que já são conhecidas, por exemplo, para alimentar a humanidade, sem destruir o mundo natural e que não são implementadas apenas em virtude do conceito atual de economia e das opções políticas atuais.
Essa opção não é novidade. O Clube de Roma elaborou-a há quase 50 anos, quando publicou seu relatório “Os limites do crescimento”. Alguns governantes tentaram aplicar parte das medidas propostas. A China teve bastante sucesso, mas outros como Índia e Peru falharam miseravelmente. Mesmo a China finalmente se rendeu às prioridades de uma visão suicida da economia que demanda mais e mais gente apenas para aumentar o consumo. E as atitudes contra as medidas para limitar o crescimento da população humana permanecem vivas e ainda mais fortes do que antes, como revelado pelos ataques violentos e irreflexivos contra as recentes declarações da ex-diretora do Fundo Monetário Internacional, que apenas lembrava as consequências econômicas da crescente longevidade da população. Ou seja, nada que não fosse um problema óbvio.
Limitar o crescimento da população humana ao nível de reposição é perfeitamente viável em um mundo ideal. Na prática, para conseguir isso sem aplicar medidas ditatoriais, é necessária muita educação, que por sua vez depende da limitação da pobreza e da melhoria da equidade e da infraestrutura social. Em teoria, é isso que todos os governos estão procurando. No entanto, isso obviamente exige uma parada ao longo do caminho, para reiniciar o processo em bases completamente diferentes daquelas que atualmente dominam a humanidade. Será esta pandemia o ponto que desencadeie o tal “resetado”?
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O post “Coronavírus: uma interpretação ecológica” foi publicado em 30th March 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco