Jürgen Haffer nasceu em 9 de dezembro de 1932 em Berlim. Seu pai era professor do ensino médio com doutorado em biologia e estimulou o interesse precoce do filho por pássaros e história natural. Mais tarde, estes interesses foram intensificados por seu professor do ensino médio, que não apenas o levou em passeios de observação de pássaros pela manhã na Prússia Oriental, mas também deu a ele seu primeiro livro sobre pássaros.
Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, aos 13 anos, Haffer encontrou uma passarinha morta que tinha preso à pata um anel. O garoto decidiu levá-la ao Museu de Zoologia de Berlim, onde foi recebido por Erwin Stresemann (1889-1972), diretor do departamento de aves e um dos ornitólogos mais conhecidos da Europa. Ao dedicar um tempo para explicar a importância da pesquisa para os estudos sobre migração das aves, Stresemann causou uma grande impressão em Haffer. Aquele encontro marcou o início de uma longa amizade entre os dois. Também marcou o início da carreira ornitológica de Haffer.
Haffer trabalhou no Museu de Berlim por um verão sob a orientação de Stresemann, antes de iniciar um curso de graduação na Universidade de Göttingen, em 1951. Seu sonho era ser ornitólogo e passar a vida estudando aves. Mas naquele momento imediatamente do pós-guerra, a Alemanha encontrava-se empobrecida, e as perspectivas de vida para um ornitólogo não era nada promissoras.
Reconhecendo que era improvável uma carreira em ornitologia, Haffer escolheu deliberadamente um diploma profissional em geologia, um curso que também incluía paleontologia e biologia. Tal era a voracidade do jovem em aprender, que seu percurso desde a entrada na graduação até defesa do doutorado foi de apenas seis anos. Ele se graduou geólogo em 1956, e defendeu o doutorado no ano seguinte, com uma tese sobre micropaleontologia.
Ao contrário do que se esperava de um aluno brilhante, que seria permanecer na universidade tornando-se pesquisador, Haffer decidiu seguir para a iniciativa privada. Aceitou uma oferta de emprego da petrolífera Mobil Oil Company para trabalhar como geólogo de campo, fazendo estudos de mapeamento geológico no norte da Colômbia.
Seu treinamento geológico-paleontológico mostrou-se útil na pesquisa ornitológica, que fazia no tempo livro de suas saídas a campo. Grande parte da Colômbia e da Amazônia eram pouco conhecidas nos anos 1950, e Haffer empreendeu muitas expedições em lombo de mula para regiões desconhecidas. Nestas ocasiões, completamente isolado do mundo exterior, o jovem pesquisador teve uma visão bastante completa da composição geológica da América do Sul em geral e do norte dos Andes em particular.
Suas impressões, dúvidas e questionamentos científicos ele compartilhava quase que semanalmente por meio de cartas (foram centenas) para o seu mestre Stresemann, em Berlim, como também a um novo colega que não conhecia pessoalmente, mas de quem eventualmente se tornou discípulo e amigo próximo. Era um professor de ornitologia do Museu de Zoologia Comparada da Universidade Harvard, e que hoje é conhecido como um dos mais influentes biólogos evolutivos do século 20, o alemão Ernst Mayr (1904-2005).
Os dados e insights adquiridos por Haffer ao longo de 10 anos de trabalho de campo de ornitologia nas selvas da Colômbia levaram-no a formular uma nova teoria da especiação na Amazônia, a chamada Teoria dos Refúgios.
Haffer percebeu que a elevação dos Andes não poderia ter sido a única responsável, nem a mais importante variável, para explicar a incrível diversidade de aves na Amazônia. Haffer passou a defender que a origem da biodiversidade amazônica se devia às flutuações climáticas no globo durante o período Pleistoceno, os últimos 2,5 milhões de anos, quando ocorreram ao menos dez eras glaciais.
Haffer formulou a hipótese da existência, no Pleistoceno, de refúgios florestais. Com a queda das temperaturas no planeta, a floresta amazônica teria em diversas ocasiões reduzido sua extensão, suas flora e fauna originais permanecendo isoladas por longos períodos em “ilhas” de floresta cercadas por “mares” de cerrado. Nestes refúgios florestais, as populações de pássaros teriam divergindo em isolamento, formando subespécies e eventualmente dando origem a novas espécies. Segundo Haffer, a imensidão dos rios amazônicos teria exercido papel importante como barreira para o contato entre dois grupos de uma mesma espécie, o que teria contribuído ainda mais para a diversificação e especiação das aves (em termos científicos, isso se chama especiação por vicariância).
O artigo “Speciation in Amazonian forest birds” , no qual Haffer pela primeira vez formulou sua teoria dos refúgios, saiu publicado na revista Science em julho de 1969, uma semana antes do homem pousar na Lua. Nos anos seguintes, a teoria dos refúgios rapidamente ganhou influência entre uma geração de pesquisadores europeus e, especialmente, sul-americanos.
No Brasil, e apenas para citar dois exemplos, as carreiras de pesquisadores importantes como o herpetólogo (e sambista) Paulo Vanzolini, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, e o geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-1912), também da USP, foram indelevelmente marcadas pela teoria dos refúgios.
Praticamente ao mesmo tempo, Vanzolini chegava em 1970 às mesmas conclusões que Haffer. Para ele estava claro que o processo de especiação podia ser iniciado por eventos de vicariância . Porém, na floresta amazônica não parecia haver eventos que justificassem a diversidade de espécies. Através de seus estudos com répteis, Vanzolini propôs que o clima amazônico poderia ter variado entre semiárido e úmido.
Já Ab’Saber expandiu a teoria dos refúgios (que originalmente só tratava de aves) para o reino vegetal. Ab’Sáber interpretou quais teriam sido os tipos vegetacionais que se expandiram e regrediram durante as flutuações climáticas do Pleistoceno, conceituando os refúgios como sendo as áreas que preservaram a vegetação úmida, ou seja, remanescentes da vegetação tropical que havia se expandido no passado.
Vanzolini e Ab’Saber continuaram “refugistas” convictos por toda a vida, mesmo quando as ideias de Haffer começaram a perder influência, a partir da virada do milênio, confrontadas com novas possibilidades para explicar a biodiversidade amazônica a partir dos avanços na genética, na biogeografia e na climatologia.
Quanto a Haffer, quando ainda vivia em Bogotá conheceu Maria Kluge, uma alemã que trabalha como professora de alemão. Eles se casaram em 1959 e tiveram dois filhos, Christian (1963) e Amelie (1965).
Haffer permaneceu e fez carreira na Mobil Oil, sendo transferido da Colômbia para os Estados Unidos, e de lá para Egito, Noruega e Irã. Em 1977, a família se mudaram para a Alemanha, para que seus filhos pudessem concluir seus estudos.
Haffer se aposentou em 1985, sem jamais ter ocupado um posto acadêmico – nem nunca ter abandonado a pesquisa científica, tendo publicado cerca de 200 artigos. É surpreendente notar que Haffer não era realmente um pesquisador profissional, mas um ornitólogo amador.
Ernst Mayr afirmou certa vez que: “O melhor trabalho dos últimos anos em especiação de aves… foi realizado por J. Haffer, um geólogo de petróleo” (Brush AH, Clark GA (eds). 1983. Perspectives in Ornithology. Cambridge University Press). Um reconhecimento formal veio com o Prêmio Brewster, em 1975, da American Ornithologist Union, por sua “brilhante série de artigos… [que] estabeleceu os padrões para futuros estudos da ornitogeografia sul-americana”.
Apesar de viver na Europa, Haffer e Maria retornavam todos os anos à Amazônia. Numa dessas viagens, em Alta Floresta (MT), hospedado às margens do rio Cristalino no Cristalino Lodge , Haffer descobriu a chamada Trilha Haffer (ou trilha do Rafa, como ficou conhecida, descoberta em 1992), de cerca de um quilômetro, que pode ser percorrida em cerca de 3 a 4 horas, e que conecta diferentes tipos de vegetação florestais, incluindo bambuzais. Todos os exemplares coletados por Haffer na viagem estão no Museu Emilio Goeldi, de Belém.
Na trilha podem ser observadas aves como a choquinha-ornada (Epinecrophylla ornata), o formigueiro-liso (Pyriglena leuconota), o chororó-de-manu (Cercomacra manu), a freirinha-de-coroa-castanha (Nonnula ruficapilla), o uirapuru-de-chapéu-branco (Pipra nattereri), o uirapuru-cigarra (Machaeropterus pyrocephalus) e o coroa-de-fogo (Heterocercus linteatus).
A última visita de Haffer à Amazônia aconteceu em 2009. Vítima de um câncer fulminante, faleceu em Essen em 23 de abril de 2010.
No mês que vem se completam dez anos da sua morte.
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O post “O alemão que intuiu o passado da Amazônia” foi publicado em 15th March 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco