O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), 24, declarou guerra a oito ex-ministros do Meio Ambiente. O motivo é seu substitutivo da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, que vem recebendo críticas de ambientalistas. Kataguiri recebeu do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a tarefa de construir consenso com a área ambiental. Maia havia prometido não levar o projeto a votação enquanto isso não ocorresse. Mas a última versão do projeto passa longe de consenso .
Os ex-ministros Edson Duarte, Sarney Filho, Izabella Teixeira, Carlos Minc, Marina Silva, José Carlos Carvalho, Rubens Ricupero e Gustavo Krause criticaram nesta semana, em artigo no jornal Folha de S.Paulo , o texto de Kataguiri, e apelaram a Maia e ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para não levar o projeto a voto. O relator respondeu no dia seguinte , acusando os ex-ministros de mentir na crítica.
O OC checou ponto a ponto as argumentações do deputado em seu artigo. Leia a seguir.
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“Artigo publicado na terça-feira (18) nesta Folha insinua que o meu relatório da Lei Geral do Licenciamento Ambiental desconstrói um ‘arcabouço’ de proteção do meio ambiente criado durante os últimos anos. Nada mais mentiroso. (…) O tal arcabouço não existe. O que existe é um verdadeiro inferno burocrático que contribui para a degradação do meio ambiente e atrasa o país.”
FALACIOSO – A crítica dos ex-ministros não foca a destruição do “arcabouço” e sim a ameaça que o projeto representaria ao próprio instituto do licenciamento ambiental. Ao flexibilizar regras e priorizar processos por adesão e compromisso – licenças que não exigem estudos de impacto ambiental –, o texto proposto colide com as normas ambientais construídas ao longo das últimas quatro décadas no país.
A afirmação do deputado de que as normas ambientais contribuem para a degradação do meio ambiente é um oximoro: pressupõe que na ausência de regramentos está o caminho para a proteção ambiental.
Em seu artigo, os ex-ministros reconhecem que há necessidade de aprimoramento e simplificação de processos no licenciamento. No entanto, o que o relatório faz, a julgar pelas versões do texto que foram divulgadas, é tornar licenças ambientais, em grande parte dos casos, equivalentes a um registro autodeclaratório. Além das regras para Licenças por Adesão e Compromisso (LAC), o artigo que regulamenta o licenciamento de atividades agropecuárias equipara o mero registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) a uma licença, mesmo com a existência de passivos ambientais na propriedade rural e sem validação pelo órgão ambiental responsável.
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“Há mais de 27 mil leis que versam sobre licenciamento ambiental.”
FALSO – Há apenas duas leis federais regulando a matéria: a Lei n° 6.938, de 1981 , que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, e a Lei Complementar n° 140, de 2011 , que delimita as competências da União, de Estados e Municípios. Além das duas leis federais, há 42 resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em vigor com regras sobre licenciamento. Se cada Estado tivesse uma lei própria de licenciamento, seriam 29 leis no total (e não 27 mil).
O deputado nunca esclareceu de onde tirou sua conta. Mas, apenas para efeito de comparação, seriam necessárias cerca de mil leis sobre licenciamento por Estado ou cinco para cada um dos 5.570 municípios do país para chegar à cifra de 27 mil. O número equivale a duas vezes o total de leis ordinárias federais (13.979) sancionadas no país de outubro de 1946, quando a contagem atual foi iniciada , até hoje. Mesmo fora de propósito, o número é mais modesto do que o que o deputado vinha informando até recentemente: 70 mil .
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“É impossível garantir proteção ambiental, segurança jurídica e eficiência num ambiente tão confuso. Tanto isso é verdade que as mencionadas tragédias de Mariana e Brumadinho aconteceram sob a vigência do regime jurídico defendido pelos ex-ministros.”
FALACIOSO – Há uma dupla falácia na argumentação de Kim. Primeiro, o artigo dos ex-ministros não chega a defender o regime jurídico atual: afirma, ao contrário, que “o fórum de ex-ministros do Meio Ambiente não ignora a necessidade de atualização no licenciamento ambiental e mesmo de simplificação de alguns processos”. Em segundo lugar, o fato de as catástrofes de Mariana e Brumadinho terem ocorrido sob as regras atuais de licenciamento apenas evidencia a necessidade de legislação mais rígida, e não mais flexível. Em Brumadinho, a catástrofe que matou 272 pessoas foi precedida de uma mudança na lei estadual de licenciamento seguida de uma redução da classificação de risco da barragem do Córrego do Feijão, que não tinha fiscalização adequada. É necessário que a legislação inclua a análise de risco ambiental para empreendimentos como barragens de mineração, entre outras medidas, o que não está previsto na última versão do texto apresentada pelo deputado. O substitutivo permite que os próprios licenciadores (como o governo de Minas Gerais) estabeleçam as regras, sem parâmetros mínimos nacionais.
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“No atual modelo, os órgãos licenciadores ficam atolados em análises de estudos intermináveis sobre empreendimentos que podem nunca vir a existir, causando um grave déficit de pessoal para fiscalizar as atividades já em funcionamento. É a pior situação possível: burocracia máxima e fiscalização mínima. Perdem o meio ambiente e os brasileiros.”
NÃO É BEM ASSIM – Há problemas de atraso em licenciamentos, decorrentes de falta de pessoal nos órgãos, estudos incompletos ou ruins e também de normas antiquadas. No entanto, é simplismo culpar a “burocracia” por tudo. Auditoria realizada em 2019 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, concluiu que a atuação do Ibama foi “tempestiva” em 75% dos processos de licenciamento de linhas de transmissão de energia analisados. O relatório do TCU também apontou que houve demora por parte de empreendedores na correção de falhas em Estudos de Impacto Ambiental, o que resultou em ampliação do prazo para concessão das licenças.
Em relatório de gestão apresentado em 2017 , o Ibama afirmou que 75% das licenças prévias requeridas foram concedidas dentro do prazo legal. No ano seguinte, esse índice caiu para 42%, e o instituto atribuiu a mudança à redução do quadro de servidores dedicados ao licenciamento ambiental, de 326 em 2017 para 238 em 2018. No mesmo período, porém, houve aumento do número de empreendimentos licenciados. Com isso, o número médio de processos por analista praticamente dobrou, de 6,6 em 2017 para 11,7 em 2018.
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“É falso que meu relatório instituiria um ‘licenciamento flex’ e causaria guerra antiambiental entre os Estados.”
FALSO – “Licenciamento flex” foi o apelido dado ao substitutivo da lei de licenciamento apresentado no governo Temer pelo então deputado Mauro Pereira (MDB-RS), que deixava que Estados e municípios fixassem livremente os critérios para definir o grau de rigor do licenciamento. É exatamente isso o que o texto de Kataguiri propõe: “Os entes federativos devem definir as tipologias de atividades ou empreendimentos sujeitos a licenciamento ambiental”.
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“Os Estados já têm autonomia para definir seus próprios procedimentos.”
VERDADE, MAS – A Resolução 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente , o Conama, autoriza os Estados a simplificar processos de licenciamento “para empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental, que deverão ser aprovados pelos respectivos Conselhos de Meio Ambiente”. Essa redação levou a algumas distorções, como no caso do governo da Bahia, que adotou “autolicenciamento” para empreendimentos que considerou de baixo impacto e foi acionado na Justiça pelo Ministério Público. O substitutivo da lei de licenciamento negociado no governo Temer com a Câmara pelo então ministro Sarney Filho buscava corrigir essas distorções fixando regras gerais, como vincular o grau de rigor do licenciamento ao tipo, ao tamanho e à localização do empreendimento.
Em vez de fixar regras gerais orientadoras para todo o país, porém, a proposta de Kataguiri abre margem para uma flexibilização geral. Há dispositivos que permitem que Estados e municípios dispensem atividades de licenciamento, suprimam etapas e eliminem exigência de estudos ambientais, o que pode resultar em uma disputa para atrair investimentos com regras cada vez mais permissivas.
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“Ainda assim, o Estado que mais recebe investimentos é justamente aquele que possui as regras mais rigorosas e a fiscalização mais presente: São Paulo.”
FALACIOSO – O argumento do deputado sobre São Paulo é um sofisma, já que o Estado é um polo de atração de empreendimentos por razões óbvias e possui uma estrutura reconhecida de licenciamento ambiental. Não há estudos técnicos comparativos que permitam confirmar a afirmação de Kataguiri.
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“A ânsia em criticar o relatório e criar uma narrativa infantil e maniqueísta (…) é tamanha que as excelências nem se deram o trabalho de ler as modificações anunciadas há mais de quatro meses, entre elas o endereçamento da questão dos impactos indiretos.”
NÃO É BEM ASSIM – A quarta versão do texto proposto pelo deputado foi divulgada há mais de seis meses, em 8 de agosto de 2019. É a que está disponível para consulta no site da Câmara dos Deputados. Se há versão atualizada, não era pública até o momento do fechamento deste texto. O deputado tem falado em mudanças em sua proposta, que passaria a incorporar os impactos indiretos (como, por exemplo, a grilagem e o desmatamento gerados no entorno de uma hidrelétrica, ou as pressões sobre os sistemas de saneamento, saúde e segurança causadas por um empreendimento que aumente a população de uma cidade), mas nunca divulgou seu novo texto.
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“A crítica ao Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC) é superficial e mentirosa. Atenção: nunca houve nenhum relatório que permitisse a abertura ou pavimentação de estradas na Amazônia por autolicenciamento. A LAC é para atividades de impacto conhecido e depende da definição prévia de condicionantes pelo órgão licenciador, atividades estas que serão fiscalizadas, como quaisquer outras.”
FALSO – Com a afirmação, o deputado reconhece que, na prática, a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) equivale a um autolicenciamento. A quarta versão do substitutivo prevê que “são consideradas atividades e empreendimentos passíveis de licenciamento ambiental pelo procedimento por adesão e compromisso aqueles definidos em ato específico do ente federativo competente”.
Ficará a cargo do órgão licenciador definir o que é baixo impacto. Se o asfaltamento de uma rodovia for considerado baixo impacto pelo governador de um Estado ou pelo presidente do Ibama, poderá ser aplicada a LAC.
O texto não menciona a necessidade de análise prévia para os casos de LAC, o que vai demandar que o Poder Público realize uma série de estudos técnicos para variados tipos de empreendimentos em diferentes regiões. É sabido que os órgãos ambientais não têm estrutura para isso. A responsabilidade do empreendedor é jogada no colo do licenciador – e, se ele não der conta, no da sociedade.
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“O que é irracional é defender que para abrir uma serralheria, um posto de gasolina ou recapear uma rodovia que está provocando acidentes o empreendedor seja obrigado a apresentar um complexo estudo e aguardar três licenças diferentes.”
FALSO – As normas atuais não impõem três etapas para serralherias. No caso de postos de gasolina, é verdade que há uma resolução do Conama estabelecendo três fases, mas alguns Estados têm usado a Lei Complementar 140 para simplificar esse processo. No caso de estradas, o recapeamento já é previsto na licença de operação, e duas portarias do Ministério do Meio Ambiente já isentam esse tipo de reparo de licença para estradas federais. Alguns Estados seguem a recomendação federal.
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Republicado do Observatório do Clima através de parceria de conteúdo. |
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