Em decisão unânime nesta terça-feira, o Conselho de Justiça Militar decretou que o cabo do Exército Diego Neitzke deve ser inocentado por “legítima defesa imaginária” ao ter fuzilado um carro com cinco amigos no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, na véspera do Carnaval de 2015. Diego, que era acusado de lesão corporal gravíssima, serve em Porto Alegre (RS) e acompanhou o julgamento por videoconferência.
A decisão foi da juíza federal Marilena da Silva Bittencourt, que presidiu o caso. Ela acatou a tese do promotor militar Otávio Bravo para quem o cabo, então com 21 anos, “supunha” estar atirando em um carro de criminosos “na iminência” de disparar contra a patrulha do Exército. Os demais membros do Conselho de Justiça, todos militares do Exército – incluindo duas capitãs mulheres – votaram com o Ministério Público Militar para inocentar o cabo.
Na madrugada de 12 de fevereiro de 2015, por volta das 2h30, uma patrulha do Exército no Complexo da Maré, que atuava na Força de Pacificação, atirou seis vezes contra um Palio branco ocupado por cinco amigos que voltavam para casa depois de assistir a um jogo de futebol em um bar. Quatro foram atingidos de raspão. O motorista, Adriano Bezerra da Silva, chegou a ser preso em Bangu acusado de tentar atropelar os militares. Foi solto e respondeu, durante quatro anos, ao crime de desacato contra militares cuja pena pode ser de até dois anos de detenção. Adriano, vendedor de coco, só foi absolvido no ano passado porque o crime prescreveu.
Já Vitor Santiago, que foi atingido por dois tiros de fuzil 7,62, perdeu os movimentos das pernas. Ele esteve presente no julgamento com sua mãe e algumas moradoras da Maré. A decisão causou revolta. “O que tem de imaginário na minha vida hoje? Sabe onde eu tô preso? Tô preso numa cadeira de rodas, na hora de tomar banho”, desabafou Vitor.
“Isso é corporativismo, é militar passando a mão na cabeça de militar. Eu tô vivo, mas e o rapaz que foi morto e não tá aqui pra falar?” perguntou, referindo-se ao músico Evaldo Rosa, morto por uma patrulha do Exército em 7 de abril do ano passado em Guadalupe, zona norte do Rio . “Quero ver se eles vão ter coragem de absolver quem atirou nele”, disse.
“Não é imaginário o que eles fizeram com o meu filho. Quem paga por isso é o meu filho que está aqui nessa situação”, afirmou a mãe de Vitor, Irone Santiago, que chegou a sofrer dois aneurismas cerebrais que ela associa ao stress pela busca por justiça nas cortes cíveis e militar. Para ela, os militares deveriam ser julgados na Justiça Comum, não no Tribunal Militar. Desde o final de 2017 , durante governo de Michel Temer (MDB), quando um membro das Forças Armadas é acusado de matar um civil com intenção (crime doloso), o julgamento é realizado pela Justiça Militar. Segundo levantamento do Globo , a mudança na legislação acabou transferindo para a Justiça Militar outros crimes cometidos por militares, como tortura e ameaça.
Segundo investigação da Agência Pública , militares são acusados de ao menos 35 mortes de civis desde 2010, quando as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) passaram a ser mais corriqueiras. Nenhum deles foi punido.
Promotor culpa Estado e exime Exército: “eles não querem estar ali”
O promotor militar Otávio Bravo, que causou polêmica ao defender a absolvição do réu por defesa legitima putativa — isto é, imaginária — tomou mais da metade da audiência em defesa detalhada das suas alegações finais. Durante sua exposição, ele se dirigiu diversas vezes a Vitor Santiago.
“Eu deixo claro, o que esse rapaz passou, passa ou passará em razão desse evento eu não tenho condições de avaliar. Por outro lado, uma eventual condenação do acusado causaria nele um sentimento de desamparo pelo fato de ter sido utilizado pelo Estado numa política de segurança absolutamente falida”, afirmou. “Não há como fazer justiça absoluta nesse caso. Alguém se sentirá desamparado, seja qualquer decisão que for tomada. Esse caso é uma tragédia e me lembra Sófocles, que tem uma passagem que diz que ‘há tempos em que até a Justiça causa sofrimento’.”
Para o promotor, condenar o cabo Nietzke seria “jogar o peso” apenas nele. “Não há dúvida que o cabo, quando atirou no veículo, ele cometeu um erro. Foi cometido um erro”, afirmou, alegando que tinha dúvidas se o erro era “escusável”.
“O que aconteceu efetivamente nesse caso? O Estado, o Governo Federal, foi a Pelotas, no Rio Grande do Sul, a 25 km ao sul de Porto Alegre, pinçou o acusado com 21 anos de idade, botou na mão dele um fuzil 7,62, jogou ele no Complexo da Maré, e falou: ‘você vai trocar tiro com traficante’” seguiu o promotor. “Colocou ele lá sem treinamento adequado, ele não é treinado para isso. O treinamento militar é completamente diferente do treinamento policial, o militar é treinado para a guerra”, expôs.
Na argumentação de Bravo, caso pedisse a condenação do cabo isso significaria que concordar com uma política de segurança pública “irresponsável”, “leviana” e “inconsequente”. O promotor ainda ressaltou que não tem “nenhuma crítica ao Exército, porque o Exército está lá cumprido ordem, a gente está vendo isso na Justiça Militar, e isso se repete, e quem senta no banco dos réus é o soldado, é o cabo”, afirmou.
Legítima defesa imaginária ou cumprimento do dever?
Como o Ministério Público Militar havia pedido a absolvição do réu, o julgamento tornou-se uma discussão sobre como o cabo seria inocentado.
A Advocacia-Geral da União (AGU), que defendeu o réu, alegou que o cabo era ainda mais inocente — após elogiar a exposição do Ministério Público, o advogado da União, Cláudio José Silva, defendeu que o réu fosse absolvido por “estrito cumprimento do dever legal”. Para tanto, elencou os depoimentos dos militares que estavam na patrulha naquele dia: eles alegam que avisaram o carro a parar e estabeleceram um checkpoint; os civis negam essa versão, ressaltando que são “unânimes”.
O advogado ainda lançou dúvidas sobre os depoimentos dos civis, alegando que havia “discrepâncias” e que eles haviam consumido bebidas alcoólicas. Na sua exposição, condenar o cabo Diego seria “aniquilar todos os depoimentos dos agentes públicos” e “dar preponderância” aos testemunhos “conflitantes” dos civis, afirmou.
O posicionamento da AGU fez com que Irone, mãe de Vitor, se retirasse do recinto aos prantos, acusando-o de “mentiroso”.
O coordenador jurídico do escritório da AGU no Rio de Janeiro fez uma ressalva, afirmando que houve um erro do Estado que deve ser reparado na esfera civil – em 2018, a União foi condenada a pagar uma reparação a Vitor que inclui pensão mensal de 1,35 salário mínimo e uma indenização no valor de um imóvel adaptável às suas limitações físicas. A AGU, que também defende essa causa, recorreu.
Ao encerrar a sessão, a juíza Marilena da Silva Bittencourt no final fez coro ao promotor militar: “lamento a tragédia que ocorreu, mas como bem disse o promotor, nem sempre a Justiça se faz para todo mundo”, finalizou.
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