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Não é previsão de Nostradamus, não; é a constatação do óbvio o tema desta coluna de hoje, mas resolvi adotar um ar meio clarividente no título porque, afinal, temos que convencer os algoritmos de que este texto merece ser lido. É clara a tendência que deve dominar a pauta do próximo ano em relação à tecnologia: a urgência de regular o uso de inteligência artificial (IA). Algo que já está em marcha.
Na semana passada, depois de 36 horas de negociações, os países membros da União Europeia e os eurodeputados fecharam um acordo histórico criando as bases para a Lei da IA no bloco econômico para garantir que seu uso seja seguro. O projeto de lei ainda vai passar por votações no Parlamento e no Conselho Europeu.
É um primeiro passo concreto, mas a discussão avançou em muitos países. No Brasil, existem pelo menos quatro projetos de lei que tentam regular o desenvolvimento e o uso de inteligência artificial. O Clube do G7 começou a elaborar um código de conduta para empresas de IA. A China também lançou sua própria Iniciativa Global para Governança da Inteligência Artificial e prometeu liderar discussões internacionais para a criação de regras para a tecnologia.
Nos EUA, país onde as discussões sobre regular Big Techs estão a reboque do resto do mundo, Joe Biden assinou no final de novembro uma ordem executiva sobre inteligência artificial que define alguns princípios norteadores para políticas sobre o tema, incluindo a exigência de envio de informações ao governo periodicamente e ações para evitar impactos negativos quando usada no sistema judiciário, sobre os direitos dos consumidores, grupos vulneráveis e sobre a privacidade dos cidadãos. Além, é claro, do objetivo de ser a liderança global no tema.
Ao mesmo tempo, está em marcha também uma corrida feroz pelo controle da tecnologia. Em setembro, a Amazon anunciou uma parceria com a startup de IA Anthropic que permite o uso da infraestrutura de nuvem e chips patenteados da Amazon para seus modelos de inteligência artificial, além de um investimento de até US$ 4 bilhões. O acordo reflete a parceria de US$ 10 bilhões da Microsoft com a OpenAI, que abriu uma onda de investimentos estratégicos das Big Techs em outras empresas de ponta que estão desenvolvendo IA, repetindo a tendência de aquisições, fusões e compras que consolidou as Big Techs tais como são hoje.
Pesquisadores do think tank Open Markets , situado em Washington, alertam para o fato de que são pouquíssimas as empresas que têm acesso à infraestrutura de nuvem, chips avançados, dados e expertise necessários para treinar e implementar modelos de IA de ponta. Sabendo disso, as Big Techs estão numa verdadeira corrida para fazer valer as regras do mercado digital que as consagraram: o efeito de rede, que torna os produtos tecnológicos mais valiosos à medida que mais usuários os adotam, e o “aprisionamento tecnológico”, que dificulta a mudança para outro serviço.
Para lidar com essas pressões, empresas como a OpenAI também têm buscado influenciar políticos e a opinião pública. Um exemplo é a bolsa, ou fellowship, chamada Open Philanthropy, que financia assessores parlamentares americanos para se tornarem “experts” na nova tecnologia. Neste ano, também surgiram alianças com veículos de mídia e grupos de apoio ao jornalismo, como maneira de demonstrar seu apoio à categoria que deve, mais uma vez, ser profundamente afetada pela adoção da IA.
Em julho, a OpenIA anunciou um financiamento de nada menos de US$ 5 milhões ao American Journalism Project , um importante projeto sem fins de lucro nos EUA que pretende apoiar veículos locais, justamente os mais afetados pela migração das receitas de publicidade para as plataformas digitais.
O fato de as empresas de tecnologia estarem se movendo tão rápido para consolidar sua posição no mercado e ganhar a simpatia do público chega a ser irônico do ponto de vista histórico, uma vez que foi a regulação das empresas de tecnologia de primeira e segunda gerações que permitiu que Googles, Facebooks e Amazons existissem.
No século 20, grandes corporações como AT&T e IBM tentaram evitar intervenções do governo americano dizendo que isso prejudicaria a inovação. Além delas, a Microsoft também foi investigada numa ação antitruste histórica e terminou sendo supervisionada por uma corte federal por quase uma década. No meio-tempo, Google e Apple saltaram para dominar o mercado dos telefones celulares, com o iPhone e o sistema operativo Android.
Mas antes delas, houve a regulamentação do governo dos Estados Unidos que ordenou a dissolução da Bell System em 1984, após uma ação antitruste. Segundo o Departamento de Justiça, a empresa abusava de seu poder de mercado e deveria vender seu produto patenteado mais valioso, o transistor, que por sua vez impulsionou o crescimento dos bens eletrônicos de consumo e dos computadores pessoais.
Então, sabemos que, apesar de toda a resistência do Vale do Silício, a regulação virá. E veremos muita ação legislativa, muito lobby e muitos projetos esquisitos sendo anunciados no próximo ano. Podem anotar: 2024 vai ser o ano em que vamos assistir da janelinha à feroz guerra sobre como serão organizadas as tecnologias que vão reger o mundo num futuro próximo.
Fonte
O post “2024 será o ano da batalha pela inteligência artificial” foi publicado em 19/12/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública